16 setembro 2018

Dois contra o povo


Haddad no Jornal Nacional: jornalismo de quinta categoria*
Jean Wyllys, no Facebook

Eu sou jornalista e trabalhei durante quase dez anos em jornal impresso, de modo que já realizei muitas entrevistas na minha vida. Posso explicar a vocês algumas noções básicas do ofício?

Numa entrevista, você, jornalista, começa fazendo uma pergunta — e a palavra “pergunta” significa aqui pergunta mesmo, e não uma longa exposição da sua opinião, porque numa entrevista, a opinião que interessa e a do entrevistado, não a do jornalista. Depois de fazer a pergunta, você deixa o entrevistado responder.

Se você considerar que a resposta foi insuficiente, não respondeu ou incorreu em falsidade ou contradição, voce faz uma re-pergunta, ou duas, ou mais, podendo confrontar o entrevistado com informações e dados verificáveis, mas sempre, depois, deixa ele responder. A proporção do tempo de fala numa entrevista é um elemento fundamental e fica muito evidente numa revista ou jornal impresso. Peguem algum jornal e confiram: as perguntas, geralmente em negrito ou itálico, são MUITO mais breves que as respostas. Se essa proporção ficar invertida, isso não foi uma entrevista!

A entrevista não é um debate de opinião entre dois adversários, entrevistador e entrevistado. Se você tem muita vontade de debater com o candidato, então deixe o jornalismo e entre na política. Aí você pode ser candidato também. Aliás, entre candidatos, num debate, não há tantas interrupções.

O que o Jornal Nacional fez hoje com Fernando Haddad deveria ser estudado nas faculdades de jornalismo para ensinar como não se faz uma entrevista:

1) As perguntas não eram perguntas, mas longas afirmações que expressavam a opinião política dos entrevistadores, e o que se pedia ao entrevistado, mais do que responder sobre algum assunto, era algo que poderia se resumir na frase: “Depois de ouvir tudo o que eu expliquei, candidato, o senhor não acha que eu estou absolutamente certo?”.

2) Os entrevistadores não permitiam que Haddad respondesse ou falasse nada. Ele foi interrompido 62 vezes em 27 minutos de entrevista, durante os quais conseguiu falar por apenas 16:05. Isso dá uma média de uma interrupção a cada 15 segundos e meio. Imaginem vocês mesmos tentando responder a alguma coisa dessa forma. Mesmo assim, Haddad se saiu muito bem!

3) Cada vez que o candidato não respondia o que eles queriam (ou seja, todas as vezes), além de interrompê-lo, os entrevistadores usavam “perguntas” do tipo: “Então o senhor não vai pedir desculpas ao povo brasileiro?”, ou “Então o senhor subestima os eleitores e acha que não sabem votar?”. Outra vez, isso não é uma pergunta!

4) Em nenhum momento da entrevista foi feita uma única pergunta sobre o programa de governo e as propostas do candidato; afinal, o que mais interessa! E todas as vezes que Haddad tentou falar de propostas, a interrupção era mais agressiva e insistente, até ele se calar. Dava a impressão que a única forma que Haddad teria de dizer algo seria gritando.

Isso não é jornalismo.

Agora procurem a entrevista de Geraldo Alckmin ao JN; está no YouTube. Assistam e comparem. Houve perguntas difíceis? Claro, mas ele teve tempo para responder a todas elas e foi tratado com respeito. Procurem entrevistas a candidatos em outros países e percebam a diferença.

A TV Globo não tratou Haddad como entrevistado, mas como inimigo a ser derrotado. É uma vergonha que isso seja o melhor que o principal telejornal do país possa oferecer à sua audiência. E faz muito mal à democracia.


* Título nosso.

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