Os meios de produção do imaginário neoliberal
Rubens
R.R. Casara, revista Cult
Da mesma
maneira que toda formação social é resultado de um modo de produção dominante,
todo imaginário pode ser apresentado também como resultado de um determinado
modo de produção de imagens e ideias. O processo de formação de novas
imagens/ideias, a partir de imagens anteriores, que são redefinidas ou
abandonadas, aciona não só novas forças produtivas como altera o funcionamento
das forças e instituições já existentes. Nessa dinâmica do imaginário, as
imagens abandonadas precisam ser substituídas para que um imaginário alcance e
mantenha a hegemonia.
O descuido com o
imaginário, ou pelo menos com a dimensão imaginária da luta de classes (e da
luta contra o sistema de opressões como um todo), fez com que a produção dos
meios de produção e dos meios de consumo, bem como a realização da
“mais-valia”, tenham sido objeto de mais atenção do que os meios de produção do
imaginário.
Se as imagens do “mercado”,
da “empresa” e do “concorrente”, dentre outras, passaram a penetrar todas as
esferas da vida, ou seja, a integrar a pré-compreensão que condiciona todas as
interpretações, escolhas e atuações do indivíduo, não é apenas no mercado, na
empresa e nas relações de concorrência que se deve procurar onde e como essas
imagens são produzidas. Olhar o que ocorre no mercado financeiro, por exemplo,
é quase que completamente inútil à compreensão da reprodução dos meios de
produção das imagens neoliberais.
A produção de imagens ou mesmo o deslocamento das imagens geradas no ambiente econômico para domínios, atividades e sujeitos não-econômicos se dá através daquilo que pode ser chamado de “máquinas de produção de subjetivismos” ou de “maquinas de subjetivação”. Não se trata de um processo simples, em que uma única fonte pode ser considerada a causa de um determinado efeito. Há, em realidade, um conjunto de elementos, dispositivos, aparelhos, instituições, técnicas e ações economicamente organizadas que fazem com que as figuras do “mercado” e da “empresa” se tornem o centro e o modelo de todas as atividades de produção e reprodução na sociedade.
Assim, os
aparelhos religiosos (na era neoliberal, o destaque é das igrejas
neopentecostais), os escolares (as escolas e as universidades públicas e
privadas, as escolas técnicas e de comércio etc.), os familiares (as diversas
formações familiares em que, sob a égide neoliberal, se naturaliza o enfraquecimento
da chamada “função paterna”, ou seja, da função de impor limites), os políticos
(o sistema político, os diferentes partidos e os movimentos populares, de
classe e identitários), os jurídicos (os tribunais, o Ministério Público, as
policias etc.), os sindicais (as Centrais de Trabalhadores, secções sindicais
etc.), de informação (a televisão, a internet, as redes sociais, o rádio, a
imprensa, os blogues etc.) e culturais (a indústria cultural, o cinema, o
teatro, as belas-artes, os esportes etc.) são os responsáveis pela produção,
propagação e substituição das imagens neoliberais.
Essas máquinas de produção
de imagens, em combinação tácita ou explícita com o poder repressivo do Estado,
forjam as subjetividades, atuando através da propagação das ideologias, do
recurso à violência simbólica, das mutações da linguagem e da repressão direta.
Em apertada síntese, a família, a igreja, a escola, o direito, a indústria
cultural, a propaganda e, sobretudo, as tecnologias ligadas às telas
(televisão, smartphone etc.) e ao poder numérico/digital (redes sociais,
dispositivos virtuais etc.), hoje, compõem o mosaico dos meios de produção de
imagens e ideias neoliberais, fornecendo informação e desinformação,
introjetando normas, reproduzindo e redefinindo “valores”, submetendo cada
pessoa e cada relação à lógica do mercado e da concorrência.
O que caracteriza as
máquinas de produção de imagens neoliberais é uma espécie de repetição cínica
de imagens e mensagens que fazem uma pessoa parecer apenas mais um objeto
negociável. Mas não só. Repete-se aquilo que interesse a ela. Esconde-se aquilo
que não interessa. Repete-se o “igual”, uma visão sempre materializada e
imutável da vida, na qual o sucesso se identifica com a obtenção de vantagens,
como forma de manter a hegemonia neoliberal. Nas redes sociais e em obediência
ao poder numérico, a repetição se dá através de um simples “toque”, de um único
movimento físico capaz de comprar um objeto ou compartilhar uma informação,
ainda que falsa. Esse “touch”/“like”, que não exige qualquer reflexão mais
aprofundada, pode ser apresentado como uma espécie de “DNA da ação digital”, o
ato, que se caracteriza pela simplicidade, através do qual o indivíduo é
controlado e, ao mesmo tempo, ajuda a controlar.
A função ideológica e
normativa dessa produção de imagens liga-se ao velamento do pensamento e da
reflexão através de um comando para reproduzir as imagens e as ideias que são
apresentadas prontas, estereotipadas, adequadas ao reino do mercado e aos
interesses dos detentores do poder econômico.
Rubens R.R. Casara é juiz
de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É
professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da
Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano.
Sinuoso é o processo de elevação
da consciência cidadã https://bit.ly/2ZVr8pE
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