Referência militante
Melka*
Essa conversa é somente pra quem como eu, se
entende militante, queria saber se assim como eu vocês também se cansam de ser
assim, claro, existe militância sobre tudo, militantes do meio-ambiente, do
feminismo, do SUS, ou os de igrejas e de movimentos anti-vacina, ou os veganos
e veganas, eu pelo menos acho que tudo isso é uma militância porque você
defende algo não só pra você, mas pra toda a sociedade, então vai pra disputa
de ideias, de opiniões pra que a gente possa mudar o mundo naquilo que a gente
acredita. E fazer isso cansa, consome energia, desgasta. Conheci muita gente no
movimento estudantil que por não saber equilibrar as doses de envolvimento com
a militância e as demandas da vida pessoal e profissional, optou por abrir mão
da vida política, porque de fato ela pode ser pesada se você não sabe conviver
com ela.
No movimento estudantil, como costumo dizer, pude
desvendar o mundo através dos óculos da militância, é como se a gente fosse
limpando ele e conforme estuda, aprende, se torna consciente da realidade de
como as coisas funcionam, a gente vai enxergando melhor os fatos, e eu acredito
que não seja possível que o óculos se sujem novamente, pelo menos na minha
percepção é um caminho sem volta. Se assumir como militante faz com que pareça
que você tenha na sua testa "SOU MILITANTE, VOU DEBATER SOBRE QUALQUER
COISA, PODE PEDIR MINHA OPINIÃO" e como tudo na vida, tem os dois lados.
O lado que eu considero importante e até bom é que
de algum modo, independente de concordar ou não com o que você defende, você se
torna referência política para os que estão a sua volta, sua família, seu
trabalho, seus amigos, as pessoas com quem você se relaciona.
Lembro de uma
eleição de reitor na UPE, a única que participei ativamente, estava entrando na
faculdade e uma menina me abordou: - hoje tem eleição né? É pra votar em quem?
Recomendei o voto, claro. Naturalmente, através das referências criadas,
naquele momento ela confiava o suficiente na minha recomendação por
compartilhar das mesmas ideias e opiniões que eu, só poderia ser isso.
Então desde esse tempo entendendo isso, me
preocupo bastante em ser referência sobre assuntos políticos, procuro ter
responsabilidade com o que falo e defendo e ter coerência pra que possa
influenciar as pessoas na boa política e juntar mais gente pra refletir sobre o
que eu acredito. E tem o lado cansativo disso, primeiro que às vezes eu queria
não ter consciência de toda realidade existente, tanta desigualdade, tanta
miséria, tanta corrupção, tanta ganância, isso me adoece enquanto gente que se
importa com gente, a ignorância protege as pessoas e nesse caso, a gente fica
completamente exposta quando tem noção do que acontece.
Além disso tem a parte chata de ser militante, eu
me importo com absolutamente tudo, e tenho necessidade de questionar e é chato
querer "consertar" tudo, desgasta muito. E aí com o tempo você acaba
tendo mais afinidade com as pessoas que pensam como você, e vai se isolando
numa bolha extremamente confortável, às vezes eu mesma penso que nem sei
conversar em ambientes de descontração com pessoas que não sejam militantes,
porque sempre vou levar qualquer conversa pra algum contexto de debate sobre as
questões sociais e políticas, meu deus, que chatice.
Mais chato ainda é quando você consegue não falar
dessas coisas e as pessoas que te veem como referência te questionam: - mas e
tua opinião sobre isso? Aí você respira e explica o que a pessoa te perguntou,
às vezes dá pra dar uma escapadinha, mas o bom mesmo é opinar com leveza e
manter a referência, a possível boa referência de militante.
*Melka Pinto,
ex-presidente da União dois Estudantes de Pernambuco-UEP, é enfermeira na rede
pública.
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Veja: No Brasil
de hoje tudo é instável e imprevisível
https://bit.ly/3eLGZj1
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