Aos que partem, aos que ficam
Joan Edesson de Oliveira
Blog do Renato
Todos os dias parte alguém próximo a alguém. Um irmão, um
aluno, uma amiga da faculdade, o pai do vizinho, a filha do conhecido, o
camarada antigo, o camarada novo, todos os dias, alguém próximo de alguém,
parte para não mais voltar.
Nossos
dias têm sido esse contar os mortos, macabra matemática. Passamos de mil por
dia, passamos de dois mil por dia, logo deixaremos a marca dos três mil para
trás. Somos uma nação em luto permanente, uma nação que chora de norte a sul,
de leste a oeste. Somos uma nação ferida de morte, a sangrar lentamente, em
longa e desesperadora agonia.
Já
não sabemos por quem choramos, antes mesmo de prantear um, já recebemos a
notícia de que outro se foi, e depois mais outro, e mais outro, e mais outro,
numa sequência infinita de mortes. A dor, o pranto, o desespero constante, o
não dormir, o não conseguir pensar em mais nada, apenas raro em raro uma
alegria, ao saber que o amigo tomou a vacina, que o sogro recebeu as duas
doses, que o velho professor e amigo está imunizado. Pequenas alegrias,
minúsculas gotas de alegria neste oceano de dor que tomou conta da nação.
Enquanto
choramos, enquanto pranteamos os que partem, somos atacados por alguns dos
vivos. Enquanto a nação sangra e sofre há alguns que pisoteiam a dor coletiva,
que escarnecem do sofrimento da multidão, que riem da desgraça imensa que se
abate sobre o povo.
Uma
caricatura demoníaca, olhos cuspindo ódio e preconceitos, boca babando mentiras
e tolices, as narinas resfolegando o fogo de trinta infernos, (des) governa o
país, empurra todos nós para o abismo mais profundo. É seguido de perto por uma
legião de pequenos demônios, criaturas vis, desprezíveis, que dançam sobre as
cinzas dos que partiram, que amassam com suas patas deformadas a terra sobre as
covas que não cessam de engolir os mortos, as covas dotadas de insaciável fome.
Com
tal cenário de destruição somos obrigados a buscar, no mais fundo de nós,
forças para resistir. Precisamos enterrar e chorar os nossos mortos pensando em
como salvar os vivos. Precisamos ter empatia com os que sofrem pelos seus
mortos, enquanto somos solidários com o sofrimento e com a fome dos que ficam.
Precisamos inventar uma força nova dentro de nós, para sermos capazes de frear
a destruição do país, para sermos capazes de fazer frente à rapinagem, para por
fim ao bombardeio de mentiras.
É
necessário interromper a conta dos mortos, é preciso defender a vida, é urgente
garantir ao menos um prato de comida na mesa de milhões de brasileiros que
passam fome em silêncio, obrigados ainda a suportar o sarcasmo e o cinismo dos
urubus que sobrevoam à espera que os corpos esfriem.
Quando
esta tormenta passar, e ela passará, não sabemos quantos faltarão à reunião da
família, não sabemos quantas cadeiras vazias haverá no encontro dos amigos, não
temos ideia de quantos terão tombado ao nosso lado.
Mas
a tormenta só passará se a dor virar indignação, se o desespero der lugar à
coragem, se o pranto virar luta. Honraremos os nossos mortos se lutarmos para
libertar os vivos, para garantir a vida, a vacina para todos, o fortalecimento
da saúde pública e, acima de tudo, se expulsarmos os demônios que nos atacam,
se pusermos para correr essas hienas que hoje mordem os nossos calcanhares.
É
necessário que lutemos, pelos que partem, pelos que ficam.
.
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