16 março 2024

Enio Lins opina

Igualar usuário/viciado ao traficante é um ato criminoso

Enio Lins*



Aprovada pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, a proposta de criminalização do porte de qualquer quantidade de qualquer droga ilícita irá à votação no plenário da casa nos próximos dias. É mais uma comprovação da extrema estupidez que teima em se superar com gestos de pirotecnia e irresponsabilidade social, ao nivelar o bandido (traficante) às vítimas (consumidores/viciados).

Segundo a Agência Senado, “ao todo, 21 senadores se pronunciaram a favor da PEC, e 4 defenderam sua rejeição”. No fundo dessa aberração senatorial estaria uma disputa com o STF, que está apreciando óbvias inconstitucionalidades contidas em dispositivos da chamada “Lei Antidrogas”.

LEI AJUDANDO O TRAFICANTE

Tal compreensão, desprezando a quantidade e igualando o consumidor ao traficante beneficia – na prática – apenas ao tráfico, que terá sua tropa de criminosos diluída na multidão de vítimas e o crime organizado terá as mais amplas condições de recrutamento de pessoas desesperadas e desnorteadas frente ao tratamento que receberão das forças policiais e das instâncias judiciais, pois se a PEC virar lei, tanto faz portar 100 quilos ou 1 grama de maconha: é traficante e ponto final.

Argumentam, os defensores desse despautério, que a “Lei de Drogas” (Lei 11.343, de 2006) contém normas semelhantes. Mas uma coisa é uma lei ordinária, pois pode (e deve) ser revista pela instância constitucional superior, no caso, o Supremo Tribunal Federal. Mas se o desacerto estiver na Constituição, aí a desinteligência fica consagrada, perpetuando a estolidez em desserviço da sociedade.

VÍTIMAS COMO ALVO

São desconhecidos dados confiáveis sobre quantos traficantes atuam no Brasil, mas a lógica indica que a quantidade de consumidores é imensamente maior. O número de usuários possui estimativas e, segundo o 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas (coordenado pela Fiocruz), em meados de 2015, cerca de cinco milhões eram vítimas de algum tipo de droga no nosso país.

Esclarece a Fiocruz que o 3º Levantamento foi realizado “entre maio e outubro de 2015, e pesquisadores entrevistaram cerca de 17 mil pessoas com idades entre 12 e 65 anos, em todo o Brasil, com o objetivo de estimar e avaliar os parâmetros epidemiológicos do uso de drogas”. Isso cresceu ou diminuiu nesses nove anos? Segundo a ONU, “o número de pessoas [no mundo] que usaram drogas em 2020 é 26% maior do que em 2010”.

CRIMINALIZANDO GERAL

Aplicando – grosso modo, apenas para exemplificar – esse índice da ONU, de 26% maior em 10 anos, podemos estimar existir hoje (no mínimo) entre seis e sete milhões de pessoas padecendo das drogas no Brasil. Se a Constituição as considerar criminosas, essas milhões de vítimas serão transformadas instantaneamente em bandidos, igualadas criminosa e irresponsavelmente aos traficantes.

Urgente, sim, é a multiplicação dos programas de tratamento humanizado de desintoxicação e acolhimento de viciados; necessárias são campanhas permanentes contra o uso das drogas. E indispensável é ampliar e endurecer sempre o combate ao tráfico, distinguindo o traficante do consumidor, evitando jogá-los no mesmo saco – o que só ajudará ao crime organizado.

E mais: o STF tem mesmo de cumprir sua obrigação e corrigir inconstitucionalidades nas legislações específicas sobre quaisquer temas.


*Arquiteto, jornalista, cartunista e ilustrador

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