16 março 2024

Raul Córdula opina

ROBERTO PLOEG - PRETEXTOS
Raul Córdula*

Antes de se tornar artista Roberto Ploeg era um teólogo holandês que em 1979 veio ao Recife em busca da orientação de Dom Helder Câmara para sua Tese de Mestrado sobre Teologia da Libertação.  Dom Helder sugeriu também a participação do padre flamengo Eduardo Hoornaert.  É conhecido o fato de que a substituição do bispado de Dom Helder por Dom José Cardoso foi uma estratégia para desmantelar em Pernambuco a ação desse grupo de teólogos e religiosos que desempenhava sua missão religiosa à luz da justiça social, tendo em vista as ações de Jesus Cristo em vida. A Teologia da Libertação encarnou a ação social da Igreja Católica direcionando-a aos pobres.

Porém Ploeg não desistiu de Pernambuco. Fixou-se em Olinda, casou-se com Eliana com quem tevê três filhos construindo aqui sua vida profícua e se lançando na arte. Embora tivesse alguma experiência com pintura na Holanda foi quase por acaso que se entregou arte ao frequentar os cursos dos ateliês didáticos que funcionavam no Museu de Arte Contemporânea de Olinda nos anos de 1980 a partir da direção de José Carlos Viana, quando começou a conviver com os artistas que lhe orientavam e com os que com ele estudavam, alguns artistas de renome hoje, como ele.

Esta exposição que a Arte Plural Galeria apresenta ao público pernambucano mostra o amadurecimento da ideia de plasmar nas telas o ponto central da Teologia da Libertação afirmando que a religião é a sacralização da vida e seu caminho para mostrar isto é transformar em pintura a humanização de passagens das Escrituras Sagradas.

Sua estratégia nesta exposição é a transposição para o dia-a-dia de parábolas, preceitos e lendas bíblicas através de uma pintura realista, como técnica, e da poética expressiva como meio de expressar sua religiosidade.     

Para localizar no tempo este conjunto de 24 magníficas obras de pintura faz-se necessário citar duas de suas séries anteriores: A primeira é a que ele refaz a atitude documental de Eckhout ao retratar o Novo Mundo através das gentes que aqui estavam nos idos de 1640. Ploeg, então, novamente como um holandês descobrindo Pernambuco, pintou as pessoas simples da periferia de Olinda em poses captadas em seus próprios ambientes, vestidas naturalmente – foi assim que citou Eckhout ao plasmar nas mais de vinte pinturas que hoje estão no Museu Nacional de Copenhague, doadas ao Rei da Dinamarca pelo Príncipe Maurício de Nassau, na ocasião representante da megaempresa holandesa chamada na ´época de Companhia das Índias Ocidentais, uma das sementes do capitalismo voraz que conhecemos hoje.

A segunda foi o conjunto de quadros da exposição apresentada na galeria Mariana Moura em 2011 intitulada CAPTURADOS, onde ele pintou retratos de amigos artistas que pousaram em atitudes de defesa, como se estivessem sendo ameaçados por bandidos ou policiais. Marcando assim sua posição de alerta política e postura pacifista, ele também comenta a vulgarização da violência mostrando que qualquer pessoa está sujeita a ela como estariam pessoas públicas e/ou artistas visuais que não negam correrem tanto perigo quanto qualquer um, rico, pobre ou miserável.

O que se mostra nesta nova exposição não é, como se podia esperar, a síntese dos dois momentos: o descobrimento da realidade social diversificada, ou o aspecto dessa realidade mostrada alegoricamente através da cumplicidade dos seus amigos artistas. O que temos é a metáfora das revelações, as traduções da epifanias, a aura sagrada fora do contexto das imagens religiosas – por um lado imagens idealizadas por quem crê, e por outro, imagens acumuladas por milênios de representações contidas na enorme iconografia religiosa judaico-cristã. É evidente que ele não é pioneiro nesta abordagem da arte, podemos citar inúmeros exemplos, um deles, que ele lança mão, é a pintura de Gauguin “O Filho de Deus”, natividade pintada no Taiti tendo uma mulher polinésia como “modelo” de Maria.

A novidade deste novo trabalho está no fato de ele lançar mão de temas religiosos clássicos pintados por mestres da pintura universal.  Importante dizer que ele não faz simplesmente releituras, ele faz traduções, sutil diferença.  

Apega-se aos aspectos da vida, do aqui e do agora, e com isto recria a cena bíblica que interessou é ainda interessa aos artistas. Tão pouco a ideia de originalidade perturba seu fazer, pois há inúmeros exemplos dessa forma de criar. O que lhe interessa é esclarecer a condição humana diante da palavra de Deus, é interpretar de forma mais convincente a relação entre homem e divindade, é tocar na questão da verdade do ser humano diante do absoluto. Deste modo nele se manifesta a possibilidade real das Escrituras Sagradas serem parte da humanidade em qualquer tempo e espaço. 

Além disso, Ploeg é um homem de fé que vivencia rigorosamente sua arte e persegue a ideia de que o homem é antes de tudo matéria divina e, por paradoxal que isto seja, evolui com Deus, a partir de Deus, nas possibilidades que Deus lhe oferece para atingir o infinito. Ele enfatiza, portanto, o homem fora do Paraíso como o homem verdadeiro, obra do Criador, e não o homem que almeja o Paraíso, o homem competidor, aquele que sempre lutará para se destacar, para ser melhor que o outro, para superar o outro.

O homem que não almeja o Paraíso, ou melhor, que vive naturalmente fora dele, é o que trabalha, alimenta seus filhos, compartilha seus bens, se integra na sua comunidade, porque ele não considera a expulsão do Paraíso como um castigo, mas como uma dádiva: Deus nos deu a terra para cuidar dela, trabalhar e ganhar o pão com o suor de seu rosto, criar a família e crescer com todos, formando a humanidade.

Esse homem não se sente culpado pelo pecado original, algo incutido na cristandade por algum tipo de poder tirânico com o fim de criar dependência nos incautos. Para gerar esta culpa foi necessário gerar a ideia de algo inatingível que o homem teria de procurar eternamente, e pensar assim na sua pequenez, no seu limite, na ideia de que somente algum tipo de poder infinitamente maior que ele o libertará desta culpa, deste pecado original: o pecado de existir.

O Homem que não quer conquistar o Paraíso é o homem que já o possui dentro de si, e Deus nos dispõe de inteligência e censo de justiça para tanto. Aprofundei-me nas ideias que norteiam a obra de Ploeg quando ele me apresentou o poema de Olavo Bilac Alvorada do Amor que lhe inspirou a pintura Terra Melhor que o Céu, Homem Maior que Deus.  Pude perceber que este quadro traduz o sentimento oculto em todas suas novas pinturas. Bilac é um poeta parnasiano pouco citado no Brasil por aqueles que procuram na poesia algo além da forma, da rima, da métrica, talvez porque poucos fazem uma leitura de sua obra que vá além da academia. O que ele revela em A Alvorada do Amor, do qual citamos os versos fundamentais em seguida, é surpreende:

E Adão vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:

Chega-te a mim! Entra no meu amor,
E à minha carne entrega tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar do Amor, renovando o pecado!
Abençoo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te de uma em uma as lágrimas do rosto!
Vê tudo nos repele! Toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
...
Amo-te! Sou feliz porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando teu corpo querido!
...
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo morrer, que importa? A natureza é tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! Bendito o momento em que me revelaste

O amor com teu pecado, a vida com teu crime!
Porque livre de Deus, redimido do sublime,

Homem fico na terra, luz dos olhos teus,
Terra melhor que o Céu, Homem maior que deus!

Na construção desta “epifania” ele trabalhou no seu entorno pintando no seu sítio-ateliê de Olinda, além dos modelos que contratou, seus filhos, seus amigos e os animais de suas criações: carneiros, ovelhas e cães rottweilers.

Eis uma exposição de um pintor comprometido com o texto religioso, mas comprometido, principalmente com sua poética pictórica, emocional e narrativa dos significados humanos.

*Artista plástico, curador e crítico de arte

Arte é vida: uma obra de Joaquin Sorolla https://tinyurl.com/3npfh3rs

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