A SITUAÇÃO NA SÍRIA PÓS-ASSAD
Cláudio Carraly*
A queda de Bashar al-Assad e seu exílio em Moscou marcaram o início de uma nova era para a Síria, após mais de uma década de guerra civil, esse conflito, cujas raízes podem ser rastreadas às tensões internas do regime, ao autoritarismo político, às demandas populares por reformas e aos interesses regionais e internacionais, resultou em uma devastação sem precedentes.
Relatórios do Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e do Escritório das Nações Unidas
para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) ilustram a gravidade da
crise humanitária, enquanto análises de centros de pesquisa independentes, como
o Carnegie Middle East Center, apontam para a complexidade da
transição. Agora, o governo de transição, liderado por Mohammed al-Bashir,
enfrenta a tarefa monumental de restaurar a estabilidade, a legitimidade
institucional, a coesão social e a prosperidade econômica, ao mesmo tempo em
que tenta consolidar uma nova ordem política que reflita a diversidade étnica,
religiosa e cultural do país.
1. Reconstrução e Reorganização Política
A infraestrutura síria foi
reduzida a escombros, instituições estatais carecem de legitimidade e
funcionalidade, e o país precisa de uma nova Constituição que represente todos
os segmentos da sociedade, o governo de transição, formado por líderes
selecionados a partir de diversos grupos étnicos e religiosos, deve estabelecer
eleições inclusivas e transparentes. Observadores internacionais da ONU, bem
como de organizações da sociedade civil síria, estão colaborando para definir
critérios de seleção de candidatos, monitorar a campanha eleitoral e assegurar
um processo justo.
A instalação de comissões da
verdade, com apoio de entidades como a Comissão Internacional Independente de
Inquérito sobre a Síria, pode contribuir para investigar crimes de guerra e
fortalecer a justiça de transição, garantindo que a reconciliação nacional não
seja apenas retórica, mas um compromisso real com a prestação de contas e a
reparação das vítimas do regime anterior. Para que esses mecanismos funcionem
adequadamente, é fundamental investir em recursos técnicos, capacitar equipes
independentes e, sobretudo, promover uma cultura de transparência nas
instituições recém-formadas
2. Retorno dos Refugiados e Deslocados
Com mais de 6 milhões de
refugiados espalhados pelo mundo e outros 6 milhões de deslocados internos, o
retorno dessa população é essencial para a normalização do país. Contudo, a
falta de segurança, moradia adequada e acesso a serviços básicos como água,
saneamento, escolas e hospitais ainda é um entrave, o governo interino, apoiado
por doadores internacionais como alguns países da União Europeia, Estados
Unidos e Golfo, bem como instituições como o Banco Mundial, tem buscado
recursos para reconstruir infraestrutura crítica.
Iniciativas locais de ONGs sírias
e conselhos comunitários fornecem informações valiosas sobre as necessidades
mais urgentes, apontando prioridades em regiões como Aleppo e Raqqa. Programas
de capacitação profissional, incentivos fiscais para pequenas empresas e
subsídios habitacionais podem acelerar o reassentamento e contribuir para a
recuperação socioeconômica, também se faz necessária uma política clara de
proteção aos direitos de propriedade dos deslocados, a fim de evitar novos
conflitos relacionados à posse de terra e moradia.
3. Ameaça de Grupos Extremistas
Apesar da derrocada do regime
anterior, a presença de células ativas do Daesh (Estado Islâmico) e outros
grupos extremistas representa um desafio significativo, a estabilização do país
depende do fortalecimento das forças de segurança locais, do compartilhamento
de inteligência com parceiros internacionais e da criação de programas eficazes
de desradicalização. Centros regionais de pesquisa em contraterrorismo, como
o Hedayah Center, apoiam o treinamento de forças de segurança
sírias e o desenvolvimento de estratégias preventivas, evitando a reprodução
dos ciclos de violência.
Nesse cenário, é igualmente
crucial a implementação de políticas voltadas para a juventude. A falta de
oportunidades e a ausência de perspectivas concretas de emprego ou educação de
qualidade podem alimentar o extremismo e o sectarismo político. Investimentos
em programas esportivos, culturais e de formação profissional podem ampliar a
sensação de pertencimento e, consequentemente, reduzir a vulnerabilidade dos
jovens à propaganda de grupos radicais.
4. Reconfiguração do Poder Geopolítico
A saída de Assad do poder
diminuiu a influência do Irã e Rússia, seus principais aliados, ao mesmo tempo
em que ampliou oportunidades para que países como Turquia e Arábia Saudita
expandam sua presença. A Turquia concentra esforços em consolidar sua
influência no norte da Síria, enquanto a Arábia Saudita financia projetos de
reconstrução na tentativa de construir pontes políticas e econômicas. Entidades
como o International Crisis Group vêm alertando para o risco
de a busca por influência degenerar em novas tensões e jogos de poder.
Nesse sentido, o governo interino
sírio busca manter uma política externa equilibrada, pautada pelo pragmatismo e
pela defesa dos interesses nacionais, para alcançar esse equilíbrio, é
fundamental estabelecer canais de diálogo bilaterais e multilaterais, contando
com mediação de organismos internacionais, para evitar que a competição
regional se converta em novos conflitos por procuração dentro do território
sírio.
5. Tensões entre Grandes Potências
A Rússia, apoiadora do regime
derrubado, tenta agora preservar algum grau de influência nas negociações
políticas, já que os únicos dois portos russos fora de seu território regional
de influência se encontram na Síria, por outro lado, os Estados Unidos e países
europeus sinalizam apoio ao governo de transição, condicionando sua assistência
econômica e política ao respeito as minorias cristãs, direitos humanos e o
mínimo de transparência administrativa. O resultado desse jogo de forças
determinará o grau de autonomia da nova Síria, nesse contexto, uma diplomacia
eficiente, baseada na construção de confiança e em princípios de não
alinhamento cego a blocos rivais, pode ampliar o espaço de manobra do governo
interino e evitar que o país seja novamente refém de disputas estratégicas
entre grandes potências.
6. Estabilidade Regional
A estabilização síria impacta
diretamente vizinhos como Líbano, Jordânia e Turquia, que abrigam milhões de
refugiados, uma Síria em reconstrução pode facilitar o retorno gradual dessas
populações, aliviando a pressão sobre infraestruturas sociais e sistemas
econômicos já saturados. Por outro lado, um fracasso na transição poderia
perpetuar a instabilidade, criando espaço para a atuação de grupos armados e
ampliando o risco da massificação dos conflitos regionais. A necessidade de
cooperação transfronteiriça em áreas como segurança, energia e gestão de
recursos hídricos para consolidar a paz de longo prazo é fundamental. A
facilitação do comércio legalizado e ações conjuntas de prevenção ao
contrabando de armas podem reforçar tanto a estabilidade interna síria quanto o
desenvolvimento econômico dos países vizinhos.
7. Reconciliação Nacional, Justiça e Governança Inclusiva
O futuro estável da Síria exige a
criação de um governo que represente efetivamente o mosaico étnico-religioso do
país, fóruns de reconciliação nacional, mediadores independentes e comissões da
verdade apoiadas pela ONU são ferramentas cruciais para superar feridas
históricas, promover o diálogo e garantir que antigos adversários políticos
encontrem canais institucionais para resolver suas divergências. Mecanismos de
justiça transicional, incluindo julgamentos e reparações, visam romper o ciclo
de impunidade e evitar novos focos de conflito no futuro, além disso, a
reconstrução do tecido social requer investimento em educação e programas
culturais que incentivem a compreensão mútua entre diferentes comunidades,
evitando que antigos preconceitos voltem a se inflamar.
8. Reconstrução Econômica e Humanitária
A reconstrução econômica requer
uma estratégia abrangente, além da restauração de áreas urbanas, o governo
precisa criar empregos, impulsionar a agricultura e a indústria leve, fomentar
o retorno de profissionais da diáspora síria e estabelecer um ambiente
regulatório transparente que atraia investimentos. A coordenação com doadores
internacionais, a concessão de microcréditos para pequenos empreendedores e
incentivos fiscais para setores-chave podem acelerar o processo de crescimento.
Ao mesmo tempo, a ajuda
humanitária imediata, apoiada por organizações como o Programa Mundial de
Alimentos (PMA) e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), por seu braço
islâmico, a Crescente Vermelha, é essencial para atender às necessidades
básicas da população, construindo um alicerce para o futuro. A priorização de
iniciativas que combinem a assistência emergencial com programas de
desenvolvimento pode prevenir a dependência contínua de ajuda e facilitar a
autonomia progressiva das comunidades mais vulneráveis.
9. Integração Regional e Cooperação Econômica
Uma Síria estável pode abrir
caminho para maior integração econômica no Oriente Médio, a reabertura de rotas
comerciais históricas, a cooperação na gestão sustentável de recursos hídricos
e a formação de alianças energéticas podem impulsionar o desenvolvimento e
fortalecer laços antigos com os países da região.
Iniciativas de cooperação
regional, como o Conselho de Cooperação do Golfo e acordos bilaterais com
Jordânia, Líbano e Turquia, podem criar sinergias econômicas que facilitem a
recuperação da Síria e do entorno regional. Ademais, a busca por parcerias em
projetos de infraestrutura, como ferrovias e corredores comerciais, poderia
integrar a Síria a novas cadeias globais de valor, garantindo benefícios recíprocos
e consolidando a paz pelo viés econômico.
10. Cenários Futuros e Propostas de Melhoria
Dependendo da efetividade dessas
iniciativas, podem-se vislumbrar três cenários para o futuro da Síria:
Positivo
Estabilidade política,
reconciliação social e recuperação econômica avançam de forma conjunta,
reduzindo a influência de grupos extremistas, incentivando o retorno de
refugiados e promovendo a integração regional. Nesse contexto, instituições
fortalecidas seriam capazes de conduzir eleições livres, garantir a segurança
interna e articular uma política externa independente, mas cooperativa, para
tanto, seria essencial continuar investindo em processos de justiça
transicional, ampliando a participação popular e assegurando que a
representatividade étnico-religiosa se reflita nas principais instâncias de
decisão.
Neutro
Alguns avanços institucionais
ocorrem, mas a lentidão na reconstrução e a persistência de tensões étnicas e
religiosas limitam a recuperação completa, exigindo esforço contínuo da
comunidade internacional. Embora haja melhoras pontuais, como eleições parciais
e crescimento moderado em alguns setores econômicos, o país ainda ficaria refém
de conflitos armados localizados em partes do seu território e disputas
regionais de poder.
Negativo
Falhas na transição, ausência de
justiça, corrupção endêmica e competição geopolítica intensificada resultam em
novos ciclos de violência, impedindo a consolidação de um Estado estável e
sustentável, a omissão ou o abandono dos organismos internacionais nesse cenário
significaria a perpetuação de um vácuo de poder, no qual grupos extremistas ou
clãs locais poderiam se fortalecer. Reestruturação dos grupos jihadistas,
possível levante nacionalista curdo, crescimento de uma milícia xiita
financiada pelo Irã, além do governo de Israel aproveitando a situação para
anexar mais território ao seu país. Tudo isso levaria a uma fragmentação do
atual território sírio em vários pequenos emirados e feudos.
A queda de Assad simboliza tanto
um desafio quanto uma oportunidade histórica para a Síria e seus vizinhos, a
transição não se limita ao âmbito interno, mas também reflete e afeta as
dinâmicas regionais e internacionais. Para transformar esse palco de conflitos
em um exemplo de superação e renovação, são necessários reconciliação nacional,
reconstrução econômica sólida, governança inclusiva, mecanismos de justiça
transicional e um esforço internacional coordenado e sustentado. Somente assim
a Síria poderá emergir como um ator regional capaz de contribuir positivamente
para a paz, o desenvolvimento e a estabilidade no Oriente Médio.
Em suma, a concretização de um
cenário positivo, aquele em que a Síria se vê reconstruída, segura e inclusiva,
depende de planejamento cuidadoso, participação ampla de todos os setores da
sociedade e apoio consistente da comunidade internacional. A execução de
políticas pautadas pela transparência, pela inclusão e pela responsabilidade
compartilhada pode assegurar o rompimento definitivo com o passado de
autoritarismo e guerra, viabilizando um futuro de paz e prosperidade para o
país e seus vizinhos.
Para tudo isso, cabe ao novo
governo abandonar a política sectária que os levou ao poder, para tratar o país
dentro do pragmatismo da Realpolitik, se isso será possível só
o tempo vai dizer, no caso do Afeganistão, não foi, e hoje o país é pior que
antes da invasão estadunidense. Esperemos que a Síria seja um momento de
inflexão do oriente médio no sentido da paz duradoura.
*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco
Leia também: Oriente Médio em crise: o coração da instabilidade global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/claudio-carraly-opina_24.html
Um comentário:
Texto dissecante da realidade síria explicando circunstâncias peculiares intestinas e a influência externa sobre o país.
Mais uma vez Carraly se mostra um estudioso sério e um analista profundo da realidade de im pais-palco de mudanças trágicas ou positivas, o tempo nos dirá,
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