14 janeiro 2025

Cláudio Carraly opina

A SITUAÇÃO NA SÍRIA PÓS-ASSAD
Cláudio Carraly* 

A queda de Bashar al-Assad e seu exílio em Moscou marcaram o início de uma nova era para a Síria, após mais de uma década de guerra civil, esse conflito, cujas raízes podem ser rastreadas às tensões internas do regime, ao autoritarismo político, às demandas populares por reformas e aos interesses regionais e internacionais, resultou em uma devastação sem precedentes.

Relatórios do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) ilustram a gravidade da crise humanitária, enquanto análises de centros de pesquisa independentes, como o Carnegie Middle East Center, apontam para a complexidade da transição. Agora, o governo de transição, liderado por Mohammed al-Bashir, enfrenta a tarefa monumental de restaurar a estabilidade, a legitimidade institucional, a coesão social e a prosperidade econômica, ao mesmo tempo em que tenta consolidar uma nova ordem política que reflita a diversidade étnica, religiosa e cultural do país.

1. Reconstrução e Reorganização Política

A infraestrutura síria foi reduzida a escombros, instituições estatais carecem de legitimidade e funcionalidade, e o país precisa de uma nova Constituição que represente todos os segmentos da sociedade, o governo de transição, formado por líderes selecionados a partir de diversos grupos étnicos e religiosos, deve estabelecer eleições inclusivas e transparentes. Observadores internacionais da ONU, bem como de organizações da sociedade civil síria, estão colaborando para definir critérios de seleção de candidatos, monitorar a campanha eleitoral e assegurar um processo justo.

A instalação de comissões da verdade, com apoio de entidades como a Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Síria, pode contribuir para investigar crimes de guerra e fortalecer a justiça de transição, garantindo que a reconciliação nacional não seja apenas retórica, mas um compromisso real com a prestação de contas e a reparação das vítimas do regime anterior. Para que esses mecanismos funcionem adequadamente, é fundamental investir em recursos técnicos, capacitar equipes independentes e, sobretudo, promover uma cultura de transparência nas instituições recém-formadas

2. Retorno dos Refugiados e Deslocados

Com mais de 6 milhões de refugiados espalhados pelo mundo e outros 6 milhões de deslocados internos, o retorno dessa população é essencial para a normalização do país. Contudo, a falta de segurança, moradia adequada e acesso a serviços básicos como água, saneamento, escolas e hospitais ainda é um entrave, o governo interino, apoiado por doadores internacionais como alguns países da União Europeia, Estados Unidos e Golfo, bem como instituições como o Banco Mundial, tem buscado recursos para reconstruir infraestrutura crítica.

Iniciativas locais de ONGs sírias e conselhos comunitários fornecem informações valiosas sobre as necessidades mais urgentes, apontando prioridades em regiões como Aleppo e Raqqa. Programas de capacitação profissional, incentivos fiscais para pequenas empresas e subsídios habitacionais podem acelerar o reassentamento e contribuir para a recuperação socioeconômica, também se faz necessária uma política clara de proteção aos direitos de propriedade dos deslocados, a fim de evitar novos conflitos relacionados à posse de terra e moradia.

3. Ameaça de Grupos Extremistas

Apesar da derrocada do regime anterior, a presença de células ativas do Daesh (Estado Islâmico) e outros grupos extremistas representa um desafio significativo, a estabilização do país depende do fortalecimento das forças de segurança locais, do compartilhamento de inteligência com parceiros internacionais e da criação de programas eficazes de desradicalização. Centros regionais de pesquisa em contraterrorismo, como o Hedayah Center, apoiam o treinamento de forças de segurança sírias e o desenvolvimento de estratégias preventivas, evitando a reprodução dos ciclos de violência.

Nesse cenário, é igualmente crucial a implementação de políticas voltadas para a juventude. A falta de oportunidades e a ausência de perspectivas concretas de emprego ou educação de qualidade podem alimentar o extremismo e o sectarismo político. Investimentos em programas esportivos, culturais e de formação profissional podem ampliar a sensação de pertencimento e, consequentemente, reduzir a vulnerabilidade dos jovens à propaganda de grupos radicais.

4. Reconfiguração do Poder Geopolítico

A saída de Assad do poder diminuiu a influência do Irã e Rússia, seus principais aliados, ao mesmo tempo em que ampliou oportunidades para que países como Turquia e Arábia Saudita expandam sua presença. A Turquia concentra esforços em consolidar sua influência no norte da Síria, enquanto a Arábia Saudita financia projetos de reconstrução na tentativa de construir pontes políticas e econômicas. Entidades como o International Crisis Group vêm alertando para o risco de a busca por influência degenerar em novas tensões e jogos de poder.

Nesse sentido, o governo interino sírio busca manter uma política externa equilibrada, pautada pelo pragmatismo e pela defesa dos interesses nacionais, para alcançar esse equilíbrio, é fundamental estabelecer canais de diálogo bilaterais e multilaterais, contando com mediação de organismos internacionais, para evitar que a competição regional se converta em novos conflitos por procuração dentro do território sírio.

5. Tensões entre Grandes Potências

A Rússia, apoiadora do regime derrubado, tenta agora preservar algum grau de influência nas negociações políticas, já que os únicos dois portos russos fora de seu território regional de influência se encontram na Síria, por outro lado, os Estados Unidos e países europeus sinalizam apoio ao governo de transição, condicionando sua assistência econômica e política ao respeito as minorias cristãs, direitos humanos e o mínimo de transparência administrativa. O resultado desse jogo de forças determinará o grau de autonomia da nova Síria, nesse contexto, uma diplomacia eficiente, baseada na construção de confiança e em princípios de não alinhamento cego a blocos rivais, pode ampliar o espaço de manobra do governo interino e evitar que o país seja novamente refém de disputas estratégicas entre grandes potências.

6. Estabilidade Regional

A estabilização síria impacta diretamente vizinhos como Líbano, Jordânia e Turquia, que abrigam milhões de refugiados, uma Síria em reconstrução pode facilitar o retorno gradual dessas populações, aliviando a pressão sobre infraestruturas sociais e sistemas econômicos já saturados. Por outro lado, um fracasso na transição poderia perpetuar a instabilidade, criando espaço para a atuação de grupos armados e ampliando o risco da massificação dos conflitos regionais. A necessidade de cooperação transfronteiriça em áreas como segurança, energia e gestão de recursos hídricos para consolidar a paz de longo prazo é fundamental. A facilitação do comércio legalizado e ações conjuntas de prevenção ao contrabando de armas podem reforçar tanto a estabilidade interna síria quanto o desenvolvimento econômico dos países vizinhos.

7. Reconciliação Nacional, Justiça e Governança Inclusiva

O futuro estável da Síria exige a criação de um governo que represente efetivamente o mosaico étnico-religioso do país, fóruns de reconciliação nacional, mediadores independentes e comissões da verdade apoiadas pela ONU são ferramentas cruciais para superar feridas históricas, promover o diálogo e garantir que antigos adversários políticos encontrem canais institucionais para resolver suas divergências. Mecanismos de justiça transicional, incluindo julgamentos e reparações, visam romper o ciclo de impunidade e evitar novos focos de conflito no futuro, além disso, a reconstrução do tecido social requer investimento em educação e programas culturais que incentivem a compreensão mútua entre diferentes comunidades, evitando que antigos preconceitos voltem a se inflamar.

8. Reconstrução Econômica e Humanitária

A reconstrução econômica requer uma estratégia abrangente, além da restauração de áreas urbanas, o governo precisa criar empregos, impulsionar a agricultura e a indústria leve, fomentar o retorno de profissionais da diáspora síria e estabelecer um ambiente regulatório transparente que atraia investimentos. A coordenação com doadores internacionais, a concessão de microcréditos para pequenos empreendedores e incentivos fiscais para setores-chave podem acelerar o processo de crescimento.

Ao mesmo tempo, a ajuda humanitária imediata, apoiada por organizações como o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), por seu braço islâmico, a Crescente Vermelha, é essencial para atender às necessidades básicas da população, construindo um alicerce para o futuro. A priorização de iniciativas que combinem a assistência emergencial com programas de desenvolvimento pode prevenir a dependência contínua de ajuda e facilitar a autonomia progressiva das comunidades mais vulneráveis.

9. Integração Regional e Cooperação Econômica

Uma Síria estável pode abrir caminho para maior integração econômica no Oriente Médio, a reabertura de rotas comerciais históricas, a cooperação na gestão sustentável de recursos hídricos e a formação de alianças energéticas podem impulsionar o desenvolvimento e fortalecer laços antigos com os países da região.

Iniciativas de cooperação regional, como o Conselho de Cooperação do Golfo e acordos bilaterais com Jordânia, Líbano e Turquia, podem criar sinergias econômicas que facilitem a recuperação da Síria e do entorno regional. Ademais, a busca por parcerias em projetos de infraestrutura, como ferrovias e corredores comerciais, poderia integrar a Síria a novas cadeias globais de valor, garantindo benefícios recíprocos e consolidando a paz pelo viés econômico.

10. Cenários Futuros e Propostas de Melhoria

Dependendo da efetividade dessas iniciativas, podem-se vislumbrar três cenários para o futuro da Síria:

Positivo

Estabilidade política, reconciliação social e recuperação econômica avançam de forma conjunta, reduzindo a influência de grupos extremistas, incentivando o retorno de refugiados e promovendo a integração regional. Nesse contexto, instituições fortalecidas seriam capazes de conduzir eleições livres, garantir a segurança interna e articular uma política externa independente, mas cooperativa, para tanto, seria essencial continuar investindo em processos de justiça transicional, ampliando a participação popular e assegurando que a representatividade étnico-religiosa se reflita nas principais instâncias de decisão.

Neutro

Alguns avanços institucionais ocorrem, mas a lentidão na reconstrução e a persistência de tensões étnicas e religiosas limitam a recuperação completa, exigindo esforço contínuo da comunidade internacional. Embora haja melhoras pontuais, como eleições parciais e crescimento moderado em alguns setores econômicos, o país ainda ficaria refém de conflitos armados localizados em partes do seu território e disputas regionais de poder.

Negativo

Falhas na transição, ausência de justiça, corrupção endêmica e competição geopolítica intensificada resultam em novos ciclos de violência, impedindo a consolidação de um Estado estável e sustentável, a omissão ou o abandono dos organismos internacionais nesse cenário significaria a perpetuação de um vácuo de poder, no qual grupos extremistas ou clãs locais poderiam se fortalecer. Reestruturação dos grupos jihadistas, possível levante nacionalista curdo, crescimento de uma milícia xiita financiada pelo Irã, além do governo de Israel aproveitando a situação para anexar mais território ao seu país. Tudo isso levaria a uma fragmentação do atual território sírio em vários pequenos emirados e feudos.

A queda de Assad simboliza tanto um desafio quanto uma oportunidade histórica para a Síria e seus vizinhos, a transição não se limita ao âmbito interno, mas também reflete e afeta as dinâmicas regionais e internacionais. Para transformar esse palco de conflitos em um exemplo de superação e renovação, são necessários reconciliação nacional, reconstrução econômica sólida, governança inclusiva, mecanismos de justiça transicional e um esforço internacional coordenado e sustentado. Somente assim a Síria poderá emergir como um ator regional capaz de contribuir positivamente para a paz, o desenvolvimento e a estabilidade no Oriente Médio.

Em suma, a concretização de um cenário positivo, aquele em que a Síria se vê reconstruída, segura e inclusiva, depende de planejamento cuidadoso, participação ampla de todos os setores da sociedade e apoio consistente da comunidade internacional. A execução de políticas pautadas pela transparência, pela inclusão e pela responsabilidade compartilhada pode assegurar o rompimento definitivo com o passado de autoritarismo e guerra, viabilizando um futuro de paz e prosperidade para o país e seus vizinhos.

Para tudo isso, cabe ao novo governo abandonar a política sectária que os levou ao poder, para tratar o país dentro do pragmatismo da Realpolitik, se isso será possível só o tempo vai dizer, no caso do Afeganistão, não foi, e hoje o país é pior que antes da invasão estadunidense. Esperemos que a Síria seja um momento de inflexão do oriente médio no sentido da paz duradoura.

*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

Leia também: Oriente Médio em crise: o coração da instabilidade global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/claudio-carraly-opina_24.html

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto dissecante da realidade síria explicando circunstâncias peculiares intestinas e a influência externa sobre o país.
Mais uma vez Carraly se mostra um estudioso sério e um analista profundo da realidade de im pais-palco de mudanças trágicas ou positivas, o tempo nos dirá,