27 janeiro 2025

Uma crônica de Abraham Sicsú

É janeiro em Recife
Difícil marcar encontros com amigos. Todos com as famílias, em praias não muito perto. Os que aqui estão, são pouco disponíveis.
Abraham B. Sicsú/Vermelho 



Mormacento, o calor aumenta. Muitos em férias. Rumo às praias. Nós já voltamos, logo no início do mês. A cidade menos cheia. O trânsito flui, os motoristas de aplicativo reclamam, pouco público. Começou o janeiro.

A mercearia que frequento duas ou três vezes na semana. Os amigos desaparecem. Os bons papos não rolam. Apenas os bêbados de plantão se fazem presentes. E são chatos. No máximo dois runs para não dizer que não se esteve lá.

Djanira 91 estava de recesso. Faltou o bom sarapatel e o miúdo de galinha. Os bares vazios. Até os da moda dá para freqüentar. Senhorzin oferece o melhor chope bem gelado da região, mas tem que agüentar uma música horrível.

Fim de semana tem praia para compensar. Boa Viagem, bem cedo, uma boa caminhada, um banho de mar. Até o joelho para ser politicamente correto. Água de coco para disfarçar, uma cerveja para refrescar, uma caipirinha para esquentar. Não se esqueça o caldinho e o queijo assado, para sustentar.

As caminhadas por ruas desertas. Cinco ou seis horas da manhã. Conheço muitos vigias de prédios. Cumprimentam. Uma breve parada para um comentário. A frase é sempre a mesma. “Cidade vazia, quase não chove ainda”. O percurso é estendido, o dia será longo, é preciso fazer hora para retornar à casa.

Tempo de muita leitura. Leio dois autores.

Édourd Louis, quase um cronista de sua vida, livros sempre focados no seu cotidiano, na sua família. Gosto mais ou menos, mas, disponíveis, não deixo de aproveitá-los.

Benjamim Labatut e suas visões claras do que a ciência fez ao mundo. Detalhista e muito bem escrito. Romanceia uma história que acredito ser verdade. A da Humanidade e a importância do conhecimento científico para sua evolução, crescimento e catástrofes. Lembro quando dava aulas de Ética na Pesquisa e falava do fator de risco e incerteza sempre presentes no evoluir da busca pelo conhecimento.

Difícil marcar encontros com amigos. Todos com as famílias, em praias não muito perto. Os que aqui estão, são pouco disponíveis. Revisões médicas, resolvendo problemas familiares, fazendo algum tratamento, preparando papelada para a aposentadoria. Parece que deixaram todos os imprevistos, mais que previsíveis, para este mês.

Nas noites há coisas boas. Janeiro de Grandes Espetáculos. Um festival de teatro, música, circo e mais, que acontece todo ano neste mês. Mais de 90 espetáculos. Completa 29 anos de existência. Começou dia 9 e vai até o final do mês.

Assisti a uma peça extraordinária. “Senhora dos nossos Sonhos”. A história de Nise da Silveira. Um monólogo interpretado pela grande atriz cearense radicada em Pernambuco, Ceronha Pontes. Foge das biografias factuais e pouco explicativas. Mostra uma “Nise” humana que via na arte e no convívio com a natureza a cura para os problemas mentais. Adorava bichos, principalmente gatos, com os quais conversava. Com uma boa base filosófica assentada nas obras de Spinoza. Recomendo se puderem ver.

Uma noitada diferente. Um espaço intimista. Poço das Artes e seus espetáculos. Não mais de 20 pessoas no salão principal. Dois excelentes violonistas. La Fúria, mestre cigano, com seu instrumento hipnotizador. Músicas latinas e flamencas. Uma mistura não esperada, mas que dá muito certo. Um copinho de vinho e uma pizza. Bons momentos com minha companhia favorita.

O neto foi para uma colônia de férias. Os filhos trabalhando. Apenas a netinha caçula disponível. Recebemos com alegria. Muita moganga, muitos trejeitos, muita interpretação gestual. Um surdo, eu, uma criança que ainda não fala. Tudo igual na comunicação. Mas, nos entendemos.

Aproveito para mostrar minhas habilidades artísticas. Faremos uma dupla e começamos a ensaiar. “Elis e Chafariz”, os incríveis palhaços acrobáticos. Imaginem, já fazemos rolamentos solares. Ou seja, ficamos no tapete rolando de um lado para o outro. O solo precisa ser acolchoado. Nunca vi um avô tão abestalhado.

Vejo, com preocupação, que essa rotina do fazer nada deve mudar. Começo a receber mensagens de trabalho, mesmo aposentado. Tenho que enviar alguns resumos para um livro que se estruturará. Reuniões em cafés começam a acontecer. Não é o espírito de janeiro, mas ganha concretude.

Também, a cidade se prepara para o grande Carnaval que virá. Prévias ocorrem em Olinda e, também, no Recife. Meu bloco, o Lilly, se concentrará para o grande ensaio geral. Será dia primeiro de fevereiro. Minha companheira já comprou ingressos. Sinto-me pressionado a ir. Farei um esforço que, tenho certeza, se transformará em muito prazer. Oportunidade para encontrar os amigos sumidos no mês. Muita cerveja muita animação, as mesmas músicas de todos os anos. Ensaio daquilo que todos nós estamos cansados de interpretar.

Janeiro, a cada ano o mesmo clima. Janeiro época de se programar, de se agoniar com as contas chegando, IPVA, IPTU, colégios e mais.

Janeiro, de se fazer promessas de que o ano será diferente, de que se arriscará mais, de que se viajará mais, de que se reencontrará muito mais. Pode nada se concretizar, mas é muito bom acreditar que isso virá. Irá acontecer pelo menos no sonhar e no imaginar, motor para a vida continuar feliz.

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