O ataque ao PIX, a LGPD e ao Judiciário como estratégia de guerra híbrida
A articulação entre sistemas domésticos de pagamento, como o PIX no Brasil e o UPI na Índia, e o avanço do Banco dos Brics viabilizam uma arquitetura financeira multipolar, na qual os países do Sul Global podem transacionar, desenvolver e acumular valor com menor exposição às pressões, sanções e volatilidades impostas pela hegemonia do dólar
Isabela Rocha e Laura Ludovico/Le Monde Diplomatique
Trump tem uma forma particular de articular política internacional. Em vez de discursos oficiais, tratados ou interlocuções diplomáticas, prefere o atalho das redes sociais. Sua plataforma favorita, a Truth Social, funciona como um megafone sem mediação, um espaço em que ele lança provocações, recados cifrados e ameaças econômicas que obrigam o aparato norte-americano que preside a correr atrás. Ainda que seja evidente que Trump esteja contornando os ritos institucionais para impor sua agenda e se esquivar de qualquer due diligence, não questionamos neste artigo seus métodos e como eles contornam os processos supostamente democráticos de seu próprio país, e sim, seus resultados.
Promovendo o caos, e obrigando o mundo a responder no ritmo acelerado determinado pela digitalização massiva, a novidade agora é o ataque ao PIX. Criado em 2020, o método de transferência operado pelo Banco Central do Brasil se tornou o maior método de pagamento no país em 2024. O PIX é um sistema de pagamentos instantâneos que liquida transferências em até cerca de 10 segundos, 24h por dia, inclusive finais de semana e feriados. Ele corta intermediários típicos de pagamentos eletrônicos (bandeira, adquirente, processadora), o que reduz custos já que para pessoas físicas, em regra, não há tarifa, e para empresas as taxas tendem a ser menores. Graças a esses atributos, foram fe itas cerca de 20 bilhões de transações e movimentados mais de R$ 11 trilhões entre 2020 e 2024.
Em comparação com o antigo DOC, ou TED, o PIX representa um salto tecnológico e institucional: enquanto os sistemas anteriores operavam apenas em horário bancário, com taxas elevadas e prazos de compensação que podiam levar horas ou até dias, o PIX realiza a transação em segundos, a qualquer momento, configurando a lógica dos pagamentos e transferências no Brasil.
Já nos Estados Unidos, o livre mercado custa caro ao consumidor e ao empreendedor. Os sistemas de pagamento nos Estados Unidos são notoriamente fragmentados, caros e lentos se comparados ao PIX. As transações via ACH, por exemplo, em geral só são liquidadas dias depois. As famosas Wire Transfers são mais rápidas, ora, podem levar apenas algumas horas, e, por serem tão velozes, custam ao bolso americano cerca de US$ 25 a US$ 50 por operação. Os mais hegemônicos Venmo e CashApp, por sua vez, operam sob condições que limitam sua escala: impõem taxas em transferências instantâneas e comerciais, além de estabelecerem tet os semanais de uso.
Não é de surpreender que nos EUA, país em que livre-mercado não é sinônimo de concorrência justa, estes sejam os paradigmas, e porque o PIX – e também os Brics – incomodam tanto.
Como os Brics movimentam dinheiro
Além do PIX, os outros países Brics também são referência em circulação rápida e barata de capital. Na Índia, o UPI (Unified Payments Interface) conecta contas bancárias diretamente, sem intermediários, viabilizando pagamentos digitais gratuitos entre pessoas e empresas, e já representa mais de 80% das transações digitais do país. A Rússia desenvolveu o Mir, um sistema nacional de cartões que substitui Visa e Mastercard no contexto das sanções, fortalecendo sua autonomia financeira. Na China, o ecossistema é liderado por UnionPay e pelos pagamentos via QR Code integrados aos superapps Alipay e WeChat Pay, usados por mais de 1 bilhão de pessoas. Já na África do Sul, soluções como o EFT Instant e os pagamentos por QR Code vêm se expandindo com apoio institucional, promovendo inclusão financeira com baixa tarifa e liquidação rápida. Ainda que apenas o PIX e o UPI indiano sejam os únicos em geral gratuitos para pessoas físicas, as opções russas, chinesas e sul-africanas são significativamente mais baratas que os sistemas norte-americanos.
Essa convergência em torno de infraestruturas nacionais de pagamento também se conecta com o fortalecimento institucional do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o chamado Banco dos Brics. Ainda que a agenda do NDB não proponha diretamente uma moeda única, ele tem atuado na criação de alternativas reais à intermediação em dólar, por meio da emissão de títulos em moedas locais, do financiamento de projetos de infraestrutura estratégica e da construção de mecanismos financeiros próprios. A articulação entre sistemas domésticos de pagamento, como o PIX no Brasil e o UPI na Índia, e o avanço do NDB compõe um mesmo movimento: o de viabilizar uma arquitetura financeira multipolar, na qual os países do Sul Global possam transacionar, desenvolver e acumular valor com menor exposição às pressões, sanções e volatilidades impostas pela hegemonia do dólar.
Ainda em fevereiro, discutimos sobre como A Escalada Tarifária Dos Eua Seria Oportunidade Para Desdolarização E Uma Nova Ordem Multipolar Liderada Pelo Brics, bem como, em abril, a importância da recondução de Dilma ao NDB no cenário geopolítico. O argumento central era que as medidas protecionistas de Trump pressurizariam blocos como o Brics+ a fortalecer suas instituições financeiras e buscar alternativas ao dólar, reduzindo a vulnerabilidade às sanções e à coerção econômica externa, e que, com Dilma à frente, o NDB reforçou proj etos em moeda local, ampliou seu campo de financiamento e avançou em mecanismos que desafiam a centralidade do dólar.
Meta-Trumpismo e o medo da concorrência justa e liberal
O argumento de que o monopólio é o estágio avançado do capitalismo radical pode até ser disputado, mas o fato é que os EUA não praticam livre mercado nem dentro de casa: seu sistema é dominado por megacorporações e holdings que sufocam a concorrência antes que ela ameace o topo. O que incomoda no PIX é justamente ele funcionar.
Um mercado perfeito num ambiente tecnológico depende de algumas condições: atomicidade entre os agentes (nenhum suficientemente grande para manipular os preços), homogeneidade dos produtos, fluidez nas trocas e transparência total das informações. Tais condições, no entanto, não existem por geração espontânea, elas precisam ser produzidas, socialmente, ou por mediação do Estado. A despeito de se posicionar globalmente como o maior defensor do neoliberalismo, do capitalismo, da livre concorrência e da desregulação, os Estados Unidos operam internamente sob uma lógica concentracionista, em que poucos conglomerados controlam a infraestrutura dos mercados digitais, financeiros e comunicacionais. O discurso do livre mercado serve como narrativa para impor regras aos outros, m as em casa o que vigora é a proteção de monopólios.
Os Brics decidiram jogar pelas regras dos EUA, mas com competência técnica, coordenação política e infraestrutura própria e isso é insuportável para Washington. O que está em disputa não é apenas o comércio ou a tecnologia, mas a narrativa legitimadora de que os EUA são um país liberal. E o sonho da América não é mais um sonho liberal: os EUA hoje são protecionistas, seletivos e autoritários, protegem seus preciosos oligopólios, hoje ,parte das Forças Armadas e da Casa Branca.
Dentre eles, a Meta. O conglomerado que controla o Facebook, Instagram e WhatsApp, este último a plataforma mais utilizada pelos brasileiros, atua como um braço informal da política externa digital norte-americana. Seu interesse no setor financeiro não é novo, mas se intensificou após o sucesso do PIX, que passou a representar uma ameaça concreta à expansão do WhatsApp Pay. Ao contrário do sistema público, gratuito e universal do Banco Central brasileiro, o WhatsApp Pay impõe limites, intermediações e tarifas: cobra 3,99% de lojistas, exige cartões de crédito vinculados a bancos parceiros e mantém o controle da infraestrutura sob servidores privados nos EUA. Trata-se de um modelo fechado, opaco, onde o acesso é condicionad o e a informação é capturada.
Trump e o ataque ao PIX como elemento de Guerra Híbrida
Desde o encerramento da Cúpula do Brics+ no Rio de Janeiro, os Estados Unidos têm adotado uma postura hostil contra o Brasil. A despeito da presidência modesta, Trump iniciou uma série de ameaças, tentando intervir na política brasileira. Semana passada, criticou abertamente o processo judicial contra o ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, afirmando que o Brasil não respeita sua própria democracia e ameaça tarifar em 50% todos os produtos brasileiros exportados aos EUA. Essa medida pode ou não ser implementada – descobriremos no início do mês que vem se Trump estava falando sério, ou blefando.
Desde a carta, no entanto, a popularidade de Lula só tem aumentado. A reação brasileira ao ultimato tarifário foi de sobriedade e defesa da soberania, reforçando a imagem do país como articulador de uma multipolaridade prudente. Enquanto isso, a ação norte-americana reforçou a popularidade do Brics+ dentro e fora do país, evidenciando a importância de uma cooperação internacional capaz de proteger seus membros de pressões externas.
No entanto, a escalada das declarações de Trump indica que as tarifas são apenas uma das frentes em jogo. Por isso o ataque ao PIX não pode ser interpretado de forma isolada, ele se insere numa ofensiva mais ampla, articulada em diferentes dimensões, que caracteriza o que chamamos de guerra híbrida. Esse tipo de conflito é simultâneo em múltiplos domínios: monetário, digital, institucional, jurídico e informacional. A guerra híbrida opera para desestabilizar o adversário por dentro, minando sua confiança social, seus instrumentos normativos e sua capacidade de coordenação soberana, e, agora, observamos disputa em pelo menos três elementos: cognitivo, comercial e judicial.
Como um país polarizado, é de se imaginar que Trump esperava que sua carta desestabilizasse a coesão interna da governança brasileira através da resposta da população. A ameaça da tarifação, por exemplo, a despeito de ter sido apoiada por alguns parlamentares da extrema-direita, teve o efeito oposto na população: cresceu o apoio ao atual governo federal e ganhou força o movimento nas redes sociais com a mensagem “O Brasil é dos brasileiros”. No elemento da cognição, Trump por enquanto está perdendo a batalha, a despeito de ser dono do campo que são as plataformas de mídias sociais digitais.
A batalha avança agora no elemento comercial com o ataque ao PIX. Trump disputa agora a infraestrutura que garante eficiência, inclusão e soberania ao sistema financeiro brasileiro. O sucesso do PIX, ao eliminar intermediários e reduzir custos, representa uma afronta direta aos interesses das grandes corporações norte-americanas que lucram com tarifas, dados e intermediações forçadas dentro de seu país, ou por fora, com as sanções unilaterais.
O terceiro flanco da guerra híbrida é institucional e jurídico. A tentativa de interferência no processo judicial contra Jair Bolsonaro, sob o pretexto de defender a democracia, revela o esforço norte-americano de deslegitimar o sistema de Justiça brasileiro. O mesmo vale para o ataque à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que estabelece regras para o tratamento de dados pessoais, inclusive digitais, com o objetivo de proteger a privacidade e a liberdade de pessoas físicas e jurídicas: no novo relatório do governo Trump, os EUA acusam a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira de ser uma barreira ao livre comércio digital.
A LGPD garante ao cidadão e às empresas a titularidade dos seus dados, além do direito de saber como eles são coletados, armazenados e utilizados. Para isso, a lei impõe um conjunto de exigências, como o consentimento do titular, que tornam o uso desses dados condicionado à transparência e à autorização prévia, e um dos pontos mais relevantes trata da responsabilidade civil: se o uso dos dados causar dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, o controlador ou operador, seja pessoa física, empresa ou órgão público, é obrigado a reparar os prejuízos.
A LGPD ainda é o principal instrumento de Soberania Digital no Brasil. Qualquer tentativa de enfraquecê-la ou desmontá-la significa, na prática, abrir as portas para que dados sensíveis de cidadãos e empresas sejam explorados por interesses estrangeiros. O argumento é que as regras brasileiras dificultam a transferência internacional de dados; mas, na prática, elas atrapalham as operações das Big Techs norte-americanas, em níveis comerciais e de cognição – e é isso que importa à Trump.
O que os EUA querem é liberar a coleta de dados dos brasileiros por empresas como Meta e Google, sem precisar seguir as regras locais. Ao criticar a LGPD, Trump tenta enfraquecer um marco legal que protege a soberania digital do Brasil, articulando tanto a questão cognitiva quanto legal-institucional dentro do panorama de guerra híbrida. Isso porque, se nossa lei estiver fragilizada no campo da cognição – permitindo que as Big Techs coletem dados e disseminem conteúdo sem responder legalmente por seus efeitos, como desinformação –, Trump poderá ganhar onde tem perdido, a opinião pública.
A defesa cognitiva no âmbito legislativo-institucional começa pela proteção dos dados. No Brasil, esse princípio está diretamente ligado à Constituição, dentro do capítulo que trata da Ordem Econômica. É por meio dela que o Estado se afirma como agente normativo, fiscalizador e regulador, inclusive no mundo digital.
E é por isso que o ataque ao PIX, à LGPD e ao Judiciário devem ser lidos em conjunto, como peças articuladas de uma ofensiva geopolítica. A verdade incômoda para os EUA é que o Brasil entregou, com o PIX, aquilo que eles dizem defender e não praticam: um mercado moderno, transparente, barato e acessível. O Meta-Trumpismo não teme o autoritarismo, e sim, teme a concorrência. E quando essa concorrência vem de países do Sul Global, que operam com soberania, competência técnica e coordenação política, o medo se transforma em hostilidade. É uma reação covarde de quem sempre defendeu o livre mercado, mas nunca soube competir em condições verdadeiramente livres.
O que Trump não suporta não é o Brasil fora de controle, é o Brasil no controle.
Isabela Rocha é mestre e doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL UnB). Atualmente coordena o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (GEPSI IREL UnB) e preside o Fórum para Tecnologia Estratégica dos BRICS+, visando o desenvolvimento de infraestrutura tecnológica integra e soberana no Brasil, no Sul Global, nos países BRICS+, e no mundo.
Laura Ludovico é advogada e especialista em direito internacional e estudos diplomáticos humanitários. Atualmente, co-coordenadora do Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacionais da Universidade de Brasília (GEPSI DATA), bem como é diretora de projetos e pesquisas do Fórum para Tecnologia Estratégica dos BRICS+.
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Como Pix afeta interesse das big techs no
Brasil? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/pix-x-big-techs.html
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