05 fevereiro 2012

Magia da leitura

O leitor
por Inácio França, na Interpoética

Já foi mais complicado chegar em Acará. Antes, para chegar lá saindo da capital paraense eram necessárias sete horas de barco pelo rio que dá nome à cidade ou fazer o caminho de carro, embarcando em balsas ou passando por estradas de terra que viravam lama sempre que chovia, ou seja, todos os dias. Agora, há pontes e uma estrada que encurtaram a viagem para apenas duas horas.

O município serve como exemplo para destruir a mentira que rodovias sempre levam desenvolvimento. Na Amazônia, estradas subtraem as riquezas da região e multiplicam os problemas.

A cidade não tem saneamento nem espaços de lazer, a limpeza pública conta com a ajuda dos prestativos urubus, os pistoleiros profissionais não precisam de disfarces, a periferia está lotada de gente que vendeu pequenos pedaços de terra cobertos de floresta, hoje substituída por plantações de dendê que serão transformadas em biodiesel.

Conheci a cidade em novembro do ano passado. Escrevendo o roteiro para um vídeo institucional, recordei tudo o que testemunhei em Acará ao analisar as 11 fitas de imagens produzidas por Marcelo Rodrigues, um cinegrafista atento e sensível como poucos.

Encontrei professores, diretores de colégio e agentes de saúde que se viram como podem. Um deles é Ronildo do Rosário, diretor da escola Eduardo Angelim, numa vila que alguns chamam de São Lourenço e outros de Boa Esperança.

Ronildo é um profissional que não se contenta com a realidade. Ele busca aliados e persevera para transformá-la. O desempenho dos seus alunos era medíocre. Poucos conseguiam concentrar-se nas aulas, o desânimo era geral. Ele não demorou a descobrir que a péssima alimentação era a maior responsável pelas faltas e notas ruins. A merenda escolar não ajudava: a prefeitura mandava carne enlatada, feijoada também em lata e macarrão, fora outras coisas pouco saudáveis.

Foi preciso várias reuniões e conversas com os pais, todos descendentes de integrantes de antigos quilombos. Custou, mas as famílias acabaram entendendo que a refeição oferecida na escola não fazia bem aos seus filhos. Em seguida, o diretor da escola convenceu os pais a regularizar a condição da comunidade quilombola.

A escola pôde, enfim, receber dinheiro federal para comprar sua própria merenda, sem precisar das porcarias que a prefeitura licitava. Os pais dos alunos passaram a fornecer a merenda: frango, macaxeira, frutas, leite e peixe, fora outras coisas bem mais saudáveis e saborosas.

Esse esforço durou quase dois anos, mas deu certo: o Ideb passou de zero vírgula alguma coisa para 3,0.

O problema é que, priorizando a merenda, não sobraram tempo e energia para cuidar da biblioteca, na verdade, uma sala até que bem arejada, com uma mesa grande, dois grandes bancos de madeira e uma estante entulhada de livros didáticos de anos anteriores. Mesmo assim, Paulo Gleidson (foto) não sai de lá.

Ele já leu praticamente todos os livros ensebados da estante. Paulo me contou que nunca leu um livro de “história”, um livro de “verdade”, como ele disse. Ele sabe que existem porque Ronildo, que é professor de português, explicou que as crônicas e pedaços de contos publicados para interpretação de textos são tirados desses livros.

Paulo sonha em estudar e se formar para ajudar seus vizinhos da comunidade, mas sabe que vai ser difícil cursar faculdade estudando numa escola tão precária. É de cortar o coração escutar um adolescente de 17 anos falar de forma tão clara a respeito dos limites dos seus sonhos e dos obstáculos para seu futuro. Pelo sertão do nordeste, me acostumei a escutar os sonhos sem freios de tudo quanto é menino ou mocinha.

O outro sonho de Paulo é botar as mãos num livro de verdade, sem exercícios, regras e lacunas esperando ser preenchidas entre um texto e outro.

Quando voltei para o barco onde a equipe ficou hospedada durante cinco dias, tirei da bolsa a coletânea de contos de Raymond Chandler que havia levado. Talvez não seja o livro mais adequado para um menino mergulhar no mundo da leitura, mas tratava-se de uma emergência. No dia seguinte, entreguei à secretária de Educação, pedindo para fazer o livro chegar às mãos do garoto. E expliquei o motivo.

Espero que ela se toque que Ronildo não pode fazer tudo sozinho para manter vivos os sonhos da moçada de São Lourenço. Ou Boa Esperança.

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