Marco Albertim
Publicado no portal Vermelho www.vermelho.org.br
Dos pés molhados subiu o agouro de que a
agonia daria lugar à demência dos sentidos, pior que moléstia de inverno.
Ramiro não tinha nada, nenhum traço no rosto indicando costume novo. Zepelin
chegara. Os dois se aquentavam sob a marquise. Nos pés de Ramiro os chinelos de
borracha, tão encharcados quanto a bainha da calça. No rosto, o rogo de
notícias juntou-se à parecença de dor.
Nenhuma suspeita podia
dar conta de conjuras, porque a chuva grossa retinha qualquer propósito de
desordem que não o do temporal. Ramiro notou o sapato de salto grosso de
Zepelin, creu-se quase curado de toda doença. Mirou o ajuste da roupa do outro
no corpo magro, com sobras de carne. Sentiu-se, Ramiro, favorecido para a
sobrevida.
Com o fim da chuva, convinha saírem da avenida para se acoitarem na rua de trás, com pouca iluminação. O guarda-chuva de Zepelin aberto compôs uma cena de rotina sem carências. Os chinelos de Ramiro chapinhavam, colando aqui e ali.
Zepelin não sugeriu compra de chinelos novos. Ramiro não tinha dinheiro e ele, Zepelin, inda que com um dinheiro a mais no bolso seco, não podia abrir mão do custeio da próxima viagem. Disse, para sair do atrapalho: “Estourou a luta. Há carência de homens”. Tão preciso quanto a roupa no corpo, deu a notícia e incitou Ramiro.
Com o fim da chuva, convinha saírem da avenida para se acoitarem na rua de trás, com pouca iluminação. O guarda-chuva de Zepelin aberto compôs uma cena de rotina sem carências. Os chinelos de Ramiro chapinhavam, colando aqui e ali.
Zepelin não sugeriu compra de chinelos novos. Ramiro não tinha dinheiro e ele, Zepelin, inda que com um dinheiro a mais no bolso seco, não podia abrir mão do custeio da próxima viagem. Disse, para sair do atrapalho: “Estourou a luta. Há carência de homens”. Tão preciso quanto a roupa no corpo, deu a notícia e incitou Ramiro.
Ramiro ajuizou-se
guerrilheiro, tocaiando, sem a atrapalhação dos chinelos na lama. Não estava
debilitado, mesmo com a palidez sob os olhos. Até ali, não dera sinais de recuo
no rumo da própria vida. Zepelin aparecia com regularidade, e cuidara para
mantê-lo animado para a exigência de entrar na refrega armada. Era o meio de
apear os milicos, e de se reencontrar com Dora. “Diga ao partido que estou
pronto para a guerrilha”. Zepelin tirou os olhos dos pés dele, olhou-o de
frente; teve vontade de abraçá-lo. A tensão do dia a dia forçou-o a um escasso
aperto de mão no ombro. Olharam-se, mirando-se de igual para igual. Zepelin
encheu-se de crenças.
A casa ficava num bairro
vizinho à fábrica onde Ramiro trabalhava. Ele dormia numa rede com punhos
atados nos caibros. Num vão de quatro paredes, janela sempre fechada e piso de
areia socada. No chão úmido de goteiras, os chinelos zuniram até ele acender o
pavio do candeeiro, sobre um banco de madeira.
Zepelin tinha sua própria rede numa sacola. Ramiro não compreendeu como ele a mantinha tão limpa. “Você vive abaixo da pobreza dos pobres. Isso pode dificultar sua convivência com a vizinhança”, ouviu do recém-chegado.
Um tambor percutiu na casa da frente. Um preto, de voz animosa, cantou para chamar o orixá. Ramiro se distraía com o vozerio feroz. A vizinhança, curiosa, se assustava, e nenhum meganha viria assuntar no terreiro de um orixá inóspito.
“Não consigo me mudar para outro lugar. Ganho um salário como ajudante”. Deitados na mesma casamata de pobreza, o juízo de Zepelin forçou Ramiro a um grau inferior na hierarquia do conluio. Era operário, passava fome; e orgulhava-se de ser parte da vanguarda dos sofridos. Na fábrica, tinha que atrair outros como ele, de macacão oleoso, para o Partido. Não conseguira porque sendo ajudante, torneiros e ferramenteiros não o tinham como dono do ofício; inda mais com o propósito de lhes dizer como poriam fim à extorsão do trabalho de cada um.
Ramiro, sem dar mostras do cansaço, quis soprar o lume do candeeiro. Zepelin deu prumo à conversa. Os ouvidos maginavam estalidos de armas. Não se ouvia nenhum tiro no ermo da Mariúna. Ouviram o apito das 22 horas da fábrica próxima; a troca de turno.
Um operário se gabara de produzir acima da média dos outros, era estúpido com os amigos. Ramiro o tinha sob rancor. Quis entender-se com Zepelin sobre como evitar uma briga. Mas tinha os urdumes em Dora. Ela ficara para trás, prenha, impedida de ter fugido com ele. Fora presa uma semana. A polícia a soltara com medo de que abortasse no cárcere. Teria nascido a criança? Ou abortara, com o desgosto de não ter o parelho acompanhando a difícil prenhez?
Zepelin tinha sua própria rede numa sacola. Ramiro não compreendeu como ele a mantinha tão limpa. “Você vive abaixo da pobreza dos pobres. Isso pode dificultar sua convivência com a vizinhança”, ouviu do recém-chegado.
Um tambor percutiu na casa da frente. Um preto, de voz animosa, cantou para chamar o orixá. Ramiro se distraía com o vozerio feroz. A vizinhança, curiosa, se assustava, e nenhum meganha viria assuntar no terreiro de um orixá inóspito.
“Não consigo me mudar para outro lugar. Ganho um salário como ajudante”. Deitados na mesma casamata de pobreza, o juízo de Zepelin forçou Ramiro a um grau inferior na hierarquia do conluio. Era operário, passava fome; e orgulhava-se de ser parte da vanguarda dos sofridos. Na fábrica, tinha que atrair outros como ele, de macacão oleoso, para o Partido. Não conseguira porque sendo ajudante, torneiros e ferramenteiros não o tinham como dono do ofício; inda mais com o propósito de lhes dizer como poriam fim à extorsão do trabalho de cada um.
Ramiro, sem dar mostras do cansaço, quis soprar o lume do candeeiro. Zepelin deu prumo à conversa. Os ouvidos maginavam estalidos de armas. Não se ouvia nenhum tiro no ermo da Mariúna. Ouviram o apito das 22 horas da fábrica próxima; a troca de turno.
Um operário se gabara de produzir acima da média dos outros, era estúpido com os amigos. Ramiro o tinha sob rancor. Quis entender-se com Zepelin sobre como evitar uma briga. Mas tinha os urdumes em Dora. Ela ficara para trás, prenha, impedida de ter fugido com ele. Fora presa uma semana. A polícia a soltara com medo de que abortasse no cárcere. Teria nascido a criança? Ou abortara, com o desgosto de não ter o parelho acompanhando a difícil prenhez?
Queria saber, ele, de
minúcias. Se inquirisse, daria mostras de que um incidente pessoal podia
interferir no percurso do guerrilheiro. “Há mulheres de arma em punho?” – quis
saber, confessando malícia. “Há algumas mulheres segurando o fuzil e sem marido
de lado. Elas não se queixam, não querem ter nome. Uma guerrilheira não tem
nome para não ser identificada pelo inimigo”. Uma mulher de arma nas mãos, sem
queixas de solteira... E ele, Ramiro, com um fuzil apontado para milicos,
aninhando a virilidade a custo de uma lembrança feliz!? “Não são tão femininas
quanto uma mulher ao lado do marido”, arriscou-se Ramiro. “Uma guerrilheira
mata por amor ao povo. São capazes de amar tanto ou mais um marido quanto uma
mulher comum”. Zepelin subjugou-o, talvez suspeitando de que Dora, longe dos
pipocos, fosse a única capaz de sujeitar o desassossego de Ramiro.
Dormiram.
Acordaram com a luz do sol no telhado. Zepelin foi o primeiro a usar o banheiro nos fundos. Ramiro, só, ajuizou-se de Dora.
Os dois não tinham relógio. Zepelin se surpreendeu quando o outro disse que faltavam quatro minutos para as seis horas, e o locutor, no radinho portátil, confirmou. “Tem um relógio na cabeça”. Incensou-o na disciplina, na vigilância contra os sobressaltos. “A fábrica me ensinou”. Há dois anos, com um livro de Gorki sob o braço, urdindo-se em Pavel, Ramiro trocara caracteres seus com os do personagem. Supusera-se incapaz de ser tão modelar, inda que se moldando para viver como um réptil nas sombras. Agora, nutrindo-se em si mesmo, não queria se mirar no perfil de Pavel. A sorte o sobrepôs a Pavel, conferindo-lhe abonação entre os outros operários.
Na fábrica, passou a manhã desbastando um eixo de aço no torno mecânico. A peça afinou-se, como a cintura de Dora antes de emprenhar.
Os dois, Ramiro e Zepelin, reencontraram-se ao meio-dia para o almoço. O mercado se enchera de feirantes. Misturaram-se ao cheiro de cebolas, feito guerrilheiros encobertos. Ramiro almoçava na marmita trazida pela preta Nô, todos os dias. Boia de peão, fiada, paga no rigor do prazo, sem gorjeta. Dispensara a preta para continuar a conjura com Zepelin. Não tinha dinheiro, não quis confessar para não constranger o outro, forçá-lo a cobrir um almoço a mais sabendo-o com a obrigação de outros. Dissera que comia com a negra, supusesse pois que almoçara com Nô.
Sacrificou-se a olhar no rosto de Zepelin sem baixar os olhos para o prato coberto de feijão, inda que a boca do outro não parasse de mastigar.
Dora mimara-o com um feijão nutriente de boa fortuna; uma celebração.
Ramiro não sabia se Zepelin tinha mulher, se a deixara em casa provendo a cama com a quentura dos quadris. Não dera sinais de que fora apartado. Não era um réptil como Ramiro, mas sumia na multidão com o trejeito comum de se vestir e andar. Procurado, com o rosto em cartazes afixados em terminais de ônibus, não se encolhia por isso mesmo, para não chamar a atenção. “Você é casado?” – aventurou-se Ramiro, presumindo uma notícia de Dora.
Insistir nas minúcias de outro era costume execrado, por ser mania de meganhas infiltrados.
Zepelin mirou-o, místico e inconfesso. Demorou quase nada para repor no juízo a vida que conhecera de Ramiro. Por conveniência, riu, desatou os ombros, cruzou as mãos sobre o prato. “Tenho minha mulher”. Admitiu uma mulher em sua vida, mas não confessou ter esposa com casa e filhos. Ramiro, flagrado no próprio enredo, encolheu-se. A silhueta de Dora desfez-se longe.
À noite voltou a chover.
Os dois se aninharam feito bandidos no covil. A percussão do babalorixá zuniu. Zepelin quis examinar o perfil da vizinhança. Ramiro animou-se.
O pai de santo encarnou um exu irado, rodopiou, foi sustido nos ombros, os olhos chispando raiva, o rosto empapado de suor. Comeu com prazer uma fatia de carne de boi, crua. Depois, para atender o rogo de uma doente que se queixava de uma ferida na coxa, fez a mulher levantar o vestido e lambeu a ferida com a língua suja de gordura.
Zepelin exorcizou-se da herança cultural dos bantos.
Os dois se recolheram. Deitados, não olhavam para o lado, posto que o escuro encobria as paredes. O lume fora posto ao lado da porta, na parede, e os dois entretinham a vista na dança da chama. O quarto era tão ermo que Ramiro se fixava na luz para se crer vivo. A pobreza de utensílios forçava Zepelin a examinar a rotina do outro.
Ramiro ligou o rádio. Zepelin queria ouvir o noticiário de rádios estrangeiras, alguém falando mal dos milicos. Não disse nada porque Ramiro calou-se, ouvindo uma música falando de mulher. Não era difícil adivinhar os pensamentos dele, fruindo o que a imaginação retivera do convívio com Dora.
O silêncio misturou-se ao escuro do vão.
Zepelin se levantou, perguntou se podiam conseguir uma garrafa com café quente. Ramiro conseguiu com a vizinha, prometendo devolver logo de manhã. Zepelin saiu, foi comprar o café numa venda próxima. Era o modo de compensar o escasso conforto com que fora acolhido. “Café para esquentar a alma”, disse. A alma de Ramiro sorveu cada gole com esperança de se redimir em alguma surpresa que a história com certeza lhe reservara. Queria distinguir a surpresa, mas a rotina da fábrica para o quarto forçava-o a palpar a cabeça como um nicho de agouros. Distraía-se com o alarde do relógio de ponto, engolindo a fila dos operários na marcha para a produção. Uma prensa enorme moldando peças em folhas de ferro. O ruído do aço embebido de óleo; chumpt... chumpt.
Trabalho perigoso que já decepara os dedos de um operário. No pavimento de cima, protegido por um vidro transparente, o dono da fábrica calculava o lucro do rito ininterrupto; e fartava-se na vaidade que o operador ostentava com a hábil manipulação da máquina.
Os dois dormiram com o rádio ligado. Zepelin quisera desligar. Não tivera coragem, para não interromper a cisma de Ramiro, pálido, em seu quarto escuro.
Os dias se seguiram assim, sem tocaias nem tiros de escopeta. Zepelin sumia todos os dias para a conjura miúda. Ramiro, envergando um macacão encravado de óleo, espremia-se entre um torno mecânico e a parede tisnada. À noite se reencontravam para a conversa já familiar.
Num domingo reuniram-se noutro bairro, o populoso Pirambu, de ruas estreitas, labirinto de ruelas. Na casa de outro operário. A mulher, magra, preparara almoço para quatro: macarrão descorado, coberto com ovos fritos. Não tinha função militante, ouvindo tudo sem dar um pio, concordando mesmo sem entender. Orgulhava-se de o marido ter amigos com fala mansa, instilando palpites raros na vizinhança. Nenhum segredo era poupado na sua frente. “Ela não fala mas tem o instinto de operário revolucionário. É a reserva moral da classe”, sentenciou Zepelin.
Ouviu-se sem esperar, um barulho de brigas na rua. Dois homens se desentenderam no balcão de um boteco, trocaram ofensas, sopapos. Gritos, mulheres gritando o nome do marido, crianças chorando, cães latindo. Alguém sugeriu chamar a polícia. Foi o bastante para pôr fim à reunião.
Saíram às pressas, correndo, atraindo a atenção dos vizinhos. Temia-se que Zepelin, com o retrato no fichário policial, fosse reconhecido. O marido da mulher ficou em casa, para não ser identificado como o homem que abrigara estranhos.
Zepelin dissera que se não houvesse boa-fé entre eles, seriam incapazes de infundir propósitos revolucionários entre os operários. Ramiro mirara-o, espremendo cada palavra para extrair um elixir com propriedades purgativas. A sorte dos revoltosos já o aliciara sem remédios; queria, sem confessar, apropriar-se de seu destino tendo Dora junto. Zepelin percebera sua inquirição muda, e não evitara olhar para ele.
A noite sem chuvas acolheu-os sem inspiração. Ramiro, com o rádio zumbindo uma música cuja letra era o que menos importava, dormiu. A tantas, sonhou com Dora mas não a teve em seu feitio inteiriço. Agonizou na inquietação de palpá-la. Zepelin, cujos sentidos se dividiam entre o sono e a precaução, ouviu o estertor: “E Dora... Onde está Dora?” O sonho sumiu de Ramiro, deixando-o livre para a fábrica logo cedo. Zepelin dormira como se estivesse vigiado por um sentimento de vindita.
Saíram juntos. Ramiro suspeitando que fora flagrado numa súplica em seu próprio santuário. Zepelin, com a mala de viagem numa das mãos, conveio ser a hora de dar em Ramiro o abraço que lhe recusara quando o ouvira dizer pronto para dar a vida. Abraçaram-se. Zepelin deu alguns passos na direção contrária, e virou-se devagar.
- Ela está casada... Comigo.
Dormiram.
Acordaram com a luz do sol no telhado. Zepelin foi o primeiro a usar o banheiro nos fundos. Ramiro, só, ajuizou-se de Dora.
Os dois não tinham relógio. Zepelin se surpreendeu quando o outro disse que faltavam quatro minutos para as seis horas, e o locutor, no radinho portátil, confirmou. “Tem um relógio na cabeça”. Incensou-o na disciplina, na vigilância contra os sobressaltos. “A fábrica me ensinou”. Há dois anos, com um livro de Gorki sob o braço, urdindo-se em Pavel, Ramiro trocara caracteres seus com os do personagem. Supusera-se incapaz de ser tão modelar, inda que se moldando para viver como um réptil nas sombras. Agora, nutrindo-se em si mesmo, não queria se mirar no perfil de Pavel. A sorte o sobrepôs a Pavel, conferindo-lhe abonação entre os outros operários.
Na fábrica, passou a manhã desbastando um eixo de aço no torno mecânico. A peça afinou-se, como a cintura de Dora antes de emprenhar.
Os dois, Ramiro e Zepelin, reencontraram-se ao meio-dia para o almoço. O mercado se enchera de feirantes. Misturaram-se ao cheiro de cebolas, feito guerrilheiros encobertos. Ramiro almoçava na marmita trazida pela preta Nô, todos os dias. Boia de peão, fiada, paga no rigor do prazo, sem gorjeta. Dispensara a preta para continuar a conjura com Zepelin. Não tinha dinheiro, não quis confessar para não constranger o outro, forçá-lo a cobrir um almoço a mais sabendo-o com a obrigação de outros. Dissera que comia com a negra, supusesse pois que almoçara com Nô.
Sacrificou-se a olhar no rosto de Zepelin sem baixar os olhos para o prato coberto de feijão, inda que a boca do outro não parasse de mastigar.
Dora mimara-o com um feijão nutriente de boa fortuna; uma celebração.
Ramiro não sabia se Zepelin tinha mulher, se a deixara em casa provendo a cama com a quentura dos quadris. Não dera sinais de que fora apartado. Não era um réptil como Ramiro, mas sumia na multidão com o trejeito comum de se vestir e andar. Procurado, com o rosto em cartazes afixados em terminais de ônibus, não se encolhia por isso mesmo, para não chamar a atenção. “Você é casado?” – aventurou-se Ramiro, presumindo uma notícia de Dora.
Insistir nas minúcias de outro era costume execrado, por ser mania de meganhas infiltrados.
Zepelin mirou-o, místico e inconfesso. Demorou quase nada para repor no juízo a vida que conhecera de Ramiro. Por conveniência, riu, desatou os ombros, cruzou as mãos sobre o prato. “Tenho minha mulher”. Admitiu uma mulher em sua vida, mas não confessou ter esposa com casa e filhos. Ramiro, flagrado no próprio enredo, encolheu-se. A silhueta de Dora desfez-se longe.
À noite voltou a chover.
Os dois se aninharam feito bandidos no covil. A percussão do babalorixá zuniu. Zepelin quis examinar o perfil da vizinhança. Ramiro animou-se.
O pai de santo encarnou um exu irado, rodopiou, foi sustido nos ombros, os olhos chispando raiva, o rosto empapado de suor. Comeu com prazer uma fatia de carne de boi, crua. Depois, para atender o rogo de uma doente que se queixava de uma ferida na coxa, fez a mulher levantar o vestido e lambeu a ferida com a língua suja de gordura.
Zepelin exorcizou-se da herança cultural dos bantos.
Os dois se recolheram. Deitados, não olhavam para o lado, posto que o escuro encobria as paredes. O lume fora posto ao lado da porta, na parede, e os dois entretinham a vista na dança da chama. O quarto era tão ermo que Ramiro se fixava na luz para se crer vivo. A pobreza de utensílios forçava Zepelin a examinar a rotina do outro.
Ramiro ligou o rádio. Zepelin queria ouvir o noticiário de rádios estrangeiras, alguém falando mal dos milicos. Não disse nada porque Ramiro calou-se, ouvindo uma música falando de mulher. Não era difícil adivinhar os pensamentos dele, fruindo o que a imaginação retivera do convívio com Dora.
O silêncio misturou-se ao escuro do vão.
Zepelin se levantou, perguntou se podiam conseguir uma garrafa com café quente. Ramiro conseguiu com a vizinha, prometendo devolver logo de manhã. Zepelin saiu, foi comprar o café numa venda próxima. Era o modo de compensar o escasso conforto com que fora acolhido. “Café para esquentar a alma”, disse. A alma de Ramiro sorveu cada gole com esperança de se redimir em alguma surpresa que a história com certeza lhe reservara. Queria distinguir a surpresa, mas a rotina da fábrica para o quarto forçava-o a palpar a cabeça como um nicho de agouros. Distraía-se com o alarde do relógio de ponto, engolindo a fila dos operários na marcha para a produção. Uma prensa enorme moldando peças em folhas de ferro. O ruído do aço embebido de óleo; chumpt... chumpt.
Trabalho perigoso que já decepara os dedos de um operário. No pavimento de cima, protegido por um vidro transparente, o dono da fábrica calculava o lucro do rito ininterrupto; e fartava-se na vaidade que o operador ostentava com a hábil manipulação da máquina.
Os dois dormiram com o rádio ligado. Zepelin quisera desligar. Não tivera coragem, para não interromper a cisma de Ramiro, pálido, em seu quarto escuro.
Os dias se seguiram assim, sem tocaias nem tiros de escopeta. Zepelin sumia todos os dias para a conjura miúda. Ramiro, envergando um macacão encravado de óleo, espremia-se entre um torno mecânico e a parede tisnada. À noite se reencontravam para a conversa já familiar.
Num domingo reuniram-se noutro bairro, o populoso Pirambu, de ruas estreitas, labirinto de ruelas. Na casa de outro operário. A mulher, magra, preparara almoço para quatro: macarrão descorado, coberto com ovos fritos. Não tinha função militante, ouvindo tudo sem dar um pio, concordando mesmo sem entender. Orgulhava-se de o marido ter amigos com fala mansa, instilando palpites raros na vizinhança. Nenhum segredo era poupado na sua frente. “Ela não fala mas tem o instinto de operário revolucionário. É a reserva moral da classe”, sentenciou Zepelin.
Ouviu-se sem esperar, um barulho de brigas na rua. Dois homens se desentenderam no balcão de um boteco, trocaram ofensas, sopapos. Gritos, mulheres gritando o nome do marido, crianças chorando, cães latindo. Alguém sugeriu chamar a polícia. Foi o bastante para pôr fim à reunião.
Saíram às pressas, correndo, atraindo a atenção dos vizinhos. Temia-se que Zepelin, com o retrato no fichário policial, fosse reconhecido. O marido da mulher ficou em casa, para não ser identificado como o homem que abrigara estranhos.
Zepelin dissera que se não houvesse boa-fé entre eles, seriam incapazes de infundir propósitos revolucionários entre os operários. Ramiro mirara-o, espremendo cada palavra para extrair um elixir com propriedades purgativas. A sorte dos revoltosos já o aliciara sem remédios; queria, sem confessar, apropriar-se de seu destino tendo Dora junto. Zepelin percebera sua inquirição muda, e não evitara olhar para ele.
A noite sem chuvas acolheu-os sem inspiração. Ramiro, com o rádio zumbindo uma música cuja letra era o que menos importava, dormiu. A tantas, sonhou com Dora mas não a teve em seu feitio inteiriço. Agonizou na inquietação de palpá-la. Zepelin, cujos sentidos se dividiam entre o sono e a precaução, ouviu o estertor: “E Dora... Onde está Dora?” O sonho sumiu de Ramiro, deixando-o livre para a fábrica logo cedo. Zepelin dormira como se estivesse vigiado por um sentimento de vindita.
Saíram juntos. Ramiro suspeitando que fora flagrado numa súplica em seu próprio santuário. Zepelin, com a mala de viagem numa das mãos, conveio ser a hora de dar em Ramiro o abraço que lhe recusara quando o ouvira dizer pronto para dar a vida. Abraçaram-se. Zepelin deu alguns passos na direção contrária, e virou-se devagar.
- Ela está casada... Comigo.
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