José Nivaldo Junior *
Conheci Fernando Lyra em meados de 1978, através da
nossa amiga comum Magnólia Cavalcanti. Na época, ele já era um ícone da
resistência democrática contra a ditadura militar e também travava uma difícil
batalha pela sobrevivência. Seu coração danificado por um enfarto
demolidor, sobrevivia graças a várias
pontes de safena, implantadas nos Estados Unidos.
Fernando estava
procurando um publicitário para cuidar da sua campanha à reeleição para Deputado
Federal. Eu, querendo uma oportunidade
para ingressar profissionalmente na área do marketing político. Foi sopa no
mel.
Campanha política
gera, entre publicitário e cliente, intimidade imediata. A admiração que já
cultivava à distância somente cresceu com a convivência. Contrariando o axioma
de que nenhuma idolatria resiste à proximidade.
Ficamos amigos.
Estreitamos uma parceria profissional que me permitiu acompanhar muito de
perto momentos decisivos da História. Só
por isso, deveria a Fernando Lyra alguns
dos momentos mais importantes da minha vida.
Posso dizer com
autoridade: ele foi um dos políticos mais corajosos, éticos, ousados e
importantes do seu tempo.
Quando se
instalou a ditadura militar o seu pai, João Lyra Filho, era empresário rico e
político bem sucedido. Decidiu filiar-se ao MDB, o partido que nasceu escalado
para fazer oposição a fim de dar ao regime ares de democracia. Os
filhos acompanharam a opção. Fernando e João Lyra Neto, nosso atual
vice-governador, também viraram emedebistas. Só que pensando em fazer oposição
de verdade.
Em 1966, Fernando
elegeu-se deputado estadual e “seu” João, Federal. Nas eleições de 1970, inverteram-se
as posições. Louve-se a visão do pai: “Meu filho, você vai para Brasília porque
lá você pode contribuir com a democracia muito mais do que eu”.
Palavras
proféticas. Com poucos meses de mandato federal, conquistado inclusive com os
votos do PCB, na época liderado por Paulo Cavalcanti, Fernando começou a
interferir decisivamente nos rumos da história.
Sem ser marxista, ele compreendia a importância do “processo
político”. E entendia claramente que as pessoas constroem sua própria história
nas condições que lhe são proporcionadas.
Foi um dos
fundadores e líderes do Grupo Autêntico do MDB, através do qual o partido se transformou em instrumento efetivo de
contestação da ditadura. Pai de filhas pequenas, enfrentou no dia-a-dia da sua desafiadora atuação os
riscos de cassação de mandato, prisão, torturas, exílio , assassinato, seqüestro.
Nunca lhe faltou um pingo de coragem.
Nas eleições de
1974, articulou uma estratégia que abalou a ditadura: o MDB lançou candidatos
de cara nova para o Senado e venceu em nada menos que 16 Estados. Em Pernambuco
ganhou Marcos Freire, de quem Fernando foi o mais entusiástico defensor. Começou
ali a abertura “lenta, gradual e segura”, para usar as palavras do ditador
Ernesto Geisel.
Sua mais
impressionante intuição se deu em 1983. Com a ditadura nos estertores, a
oposição superou o casuísmo do voto vinculado e venceu, no ano anterior, as primeiras eleições diretas para governador
nos Estados de eleitorado
predominantemente urbano.
As principais
figuras da oposição se dividiram entre as posses de Brizola, no Rio, e Franco
Montoro em São Paulo. Fernando Lyra foi para Belo Horizonte, assistir a posse
de Tancredo Neves, um político do Grupo Moderado do partido, portanto seu rival
nas disputas internas.
E justificou ao
seu perplexo anfitrião: “O senhor é o nome ideal para as oposições concorrerem
à Presidência.” Quando a emenda que propunha eleições diretas foi derrotada no
Congresso, Fernando passou a articular abertamente o nome de Tancredo para disputar no Colégio Eleitoral, desafiando o candidato
dos militares. Muitos vieram depois. Ele foi o primeiro.
Visando não
apenas a vitória como também a legitimidade do apoio popular, a estratégia da
comunicação de Tancredo Neves era como
se ele fosse disputar o voto direto. Coordenei a propaganda de convocação do
grande comício, em Caruaru, no qual Fernando fez o lançamento em praça pública,
com repercussão nacional.
Os discursos de
Fernando Lyra eram marcantes, inesquecíveis. Com sua voz de trovão, ele bradou
seu refrão preferido: “E quando os votos do Colégio Eleitoral forem dados, eu
quero ouvir: Tancredo. Tancredo. Tancredo. Tancredo Neves, presidente do
Brasil.” A multidão, arrepiada, delirava. Uma girândola completava a emoção.
Quando desceu do
palanque, Tancredo abraçou Fernando. Eu estava perto o suficiente para ouvir
sua fala: “Deputado Fernando Lyra, eternamente grato”.
Vitorioso,
Tancredo escolheu Fernando para a pasta da Justiça, que na época tinha a
dimensão de ser o Ministério político do
governo. Com a missão de devolver ao país a Democracia plena.
Tarefa que ele
cumpriu nos 11 meses em que foi ministro de Sarney, o vice que assumiu a
Presidência com a doença e morte de Tancredo. Justiça se faça: o
maranhense, egresso da direita que apoiara a ditadura, autorizou e deu suporte
à remoção do entulho da legislação
autoritária. O fim da Censura, pelas mãos de Lyra, foi o momento mais simbólico
desse processo.
Fernando Lyra
representa uma das principais personagens da redemocratização do Brasil.
Somente com isso, teria garantido seu lugar na história.
Estadista que
pensava no País acima de tudo, nunca praticou uma atitude política para tirar
vantagem pessoal. Honesto a toda prova, não aumentou patrimônio na vida
pública. É portanto uma referência ética neste País de escândalos e malfeitos.
Pessoa humana
extraordinária, iluminava com sua conversa sempre exuberante qualquer ambiente.
Estava à vontade entre sábios ou comuns. De todos, sentia-se igual.
Bacharel de
Caruaru, como diziam alguns medíocres detratores, empolgou em conferência o
seleto público da Sorbonne. Dialogou com os maiores líderes mundiais. Ficou
amigo de vários deles.
Com a mesma
naturalidade com que visitava os presos políticos nos cárceres, freqüentava os mais requintados salões.
Denunciava crimes políticos da ditadura com a mesma firmeza com que clamava
contra as injustiças sociais.
Não fazia
distinções no bem querer. Seus amigos não eram
velhos ou novos, freqüentes ou episódicos. Tinha amigos, e ponto final.
A todos dedicava, sem distinção, um afeto imenso e não excludente.
Nessa difícil
hora do adeus definitivo, vale ressaltar o exemplo de um homem plural, de
múltiplas facetas sempre propositivas. Sobretudo um ser humano que amava a
vida com todas as forças.
Em meio à imensa
tristeza da perda, me considero feliz. Como todos os que conviveram com ele,
carregarei para toda a vida a energia positiva que emanava do seu ser. O seu
exemplo nos convida a viver com mais ardor, com mais paixão.
Esse é o grande
tributo que podemos prestar à sua memória.
*Publicitário
e escritor. ze@makplan.com.br
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