10 fevereiro 2013

Domingo é dia de conto

Picasso
O último poema
Marco Albertim

Publicado no portal Vermelho www.vermelho.org.br


O poeta findou-se ao meio-dia de uma segunda-feira, em 6 de junho; no mesmo dia e mesma data em que nascera, tão mediano quanto sua vida de cinquenta anos. Suspeitara de que não passaria dos cinquenta, quando, ainda com vinte e cinco anos, olhou para cima e deu-se conta de que a lua não abrira mão do quarto crescente por uma semana.

Então com cinco lustros, distinguiu mais cinco de uma rotina sem pausas e com passos calculados. Debruçado na janela vizinha à esquina do sobrado onde morara, mirando com os olhos parados, o rodopio de mariposas em volta da luz de mercúrio no poste da mesma esquina.

Escrevera os primeiros versos, animado pelos passos nunca tortos de três irmãs cujos olhos nunca se deram ao trabalho de perceber o que a vida lhes urdira em cada lado de seus rostos. Como se podia viver com tamanha estranheza para uma banda de música tão ruidosa como a Curica, nos ensaios de frevo-abafo, seguindo a batuta sinistra nas mãos não menos sestrosas do maestro Cupim?

As três, ora... Morando vizinhas à sede da banda! Certo é que a parede separando-as dos músicos, era tão vedada quanto os ouvidos das três irmãs. Mas em cima, sob a viga mestra de madeira, uma fresta ou outra deixava soprar meia dúzia de açoites jazzísticos que o maestro Cupim copiara de memória quando vira a orquestra de Glenn Miller no cinema.

Um dia o maestro Cupim, junto com dez de seus melhores jazzistas, parou na bodega de Joca Barbosa para entornar uns goles da bebida preparada pelo vendeiro – infusão de cachaça com cascas de jurema. Riram a valer, incitados pelo verbo profuso vindo da pança cevada em cerimônias de comilança em ritos de macumba, do vendeiro.

- Ao jazz! – gritou Cupim e os músicos o seguiram.

Era domingo. As três irmãs, com a mãe junto da mais velha, estavam sentadas em cadeiras com encosto de vime, na calçada em frente a casa. A velha riu com o andar jazzístico de Cupim, mesmo sem a vara da batuta numa das mãos. Num instante a sede foi aberta e teve começo o ruidoso festim do jazz. Os casais atraídos puseram-se a dançar no estreito dancing, à frente do palco a meio metro de altura.

Caio Toledo Dajuda, o poeta de trajeto curto, animou-se e chamou Jupira para dançar, a mais velha das irmãs. A mãe consentiu com um sorriso escasso, do modo como os dois deviam se comportar.

Daquele domingo em diante, os dois, sentados nas cadeiras com encosto de vime, vergaram as costas por vinte anos, num noivado tão puro quanto infindo. A união mudou o nome da rua para rua do Lindamor, sobretudo depois da morte de Dajuda.

A mãe de Jupira, impaciente com a demora do casamento, encheu-se de confiança nos modos do candidato a genro, tamanha era a polidez com que Dajuda tratava a moça. Numa noite, os dois, depois de se sublimarem ouvindo a trilha sonora de Casablanca, foram a um restaurante próximo, beberam vinho e trocaram beijos módicos. Na semana seguinte, um domingo, o maestro Cupim voltou a reger a mesma música. De volta para casa, Dajuda e Jupira subiram para o sobrado. No terraço dos fundos, amaram-se sem concessão aos pruridos da virgindade.

No quarto, sozinho, sentindo a proximidade do derradeiro suspiro, Dajuda escreveu seu último poema.

Poema do começo

(Na primeira noite)

Inda que o apalpo das mãos tenha sido sinistro

A promessa dos olhos, veloz

O beijo sem cálculo, escasso

Inda que à espreita da estrela oculta

Piscando para não confirmar a agonia da hesitação

E mesmo que do vinho só se distinguisse o antegozo

E o garçom, cúmplice, tenha prescrito o manjericão para o fim da náusea

A conta, escrita no capricho do lucro, paga feito uma dívida no celofane

E no táxi, o chofer tão só na adivinhação de locuções

Um meteoro riscou no céu de Olinda

Uma linha divisória

(Na segunda noite)

A estrela, com arreganho nos olhos

Distinguiu os dois corpos promiscuindo-se na sua luz

O apalpo das mãos rendeu-se, mole, ao repuxo dos beiços

O bico dos seios, olhando para cima, sem trocar palavras

Rijos de arrogância.

Na parede nua de relógios

A mandala inchou-a de agouros

A posse do corpo, lenta, deu-se com a mão na corola do ventre

O talho sanguíneo, mudo, movendo-se feito uma alga

Seco nas entranhas

Com umidade nos lábios.

Os dedos deixaram-se engolir

Para, plenos de mobilidade, prepararem o terrapleno

A mãe de Dajuda entregou o manuscrito a Jupira. No velório, a velha quis fechar os olhos do falecido, e cerrar a boca que mantivera um esboço de sorriso. Jupira segurou-a no pulso e disse:

- Deixe que ele seja enterrado feliz.

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