O saque
Marco Albertim, no Vermelho
Rígido ali, só mesmo o
delegado parado à porta de seu gabinete, fitando a imagem do Cristo acima de
sua poltrona, enxergando cumplicidade nos olhos de peixe morto de um Cristo que
de tão agônico, renunciara a ouvir o murmúrio de crimes no corredor em frente.
O
Cristo tinha olhos tão somente para a poltrona do delegado, mesmo em sua
ausência, o que infundira a convicção de que, estando sua poltrona vazia, a
pregação que se desprendia dos olhos mortos, agonizava mais ante os ouvidos
moucos das paredes.
Quis
sentar-se, mas decidiu ficar ali por mais tempo, para não dar as costas à aura
a seu ver vital, que descia dos olhos do Cristo. O Velho Testamento na gaveta à
direita de seu birô, com frequência sustinha-o na mão do mesmo lado, sobre
pastas de inquéritos ainda em curso. A força da Palavra dando prumo e
entrevendo sentenças de punição a ímpios ainda não arrependidos.
Ao fim
de cinco minutos, recompôs o paletó cinza, da mesma cor da calça. A reza comum
a seus balbucios solitários, subjugou-o na feliz prostração do pensamento sem
curvas, cego aos flancos de pecadilhos atraentes. Respirou fundo antes de dar o
primeiro passo para a poltrona àquela altura duas vezes fria, porque também se
fizera indiferente aos rogos do Cristo acima. Já andando, atinou outra vez para
a sua crença pútrida, por isto mesmo cultuada e só abrigada em seu peito de
reação morna à rotina desigual dos presos sob sua custódia.
Sentado,
mesmo olhando para o corredor de onde viera com passos lentos para fruir-se dos
cumprimentos reverentes que ouvira dos agentes na sala, não viu o comissário
chegar, pedir licença para falar e dar conta do rebuliço iminente na avenida em
frente.
- Como
assim? – não se desprendera de seus santos.
- Não
podemos fazer nada. São centenas, talvez mais de mil pessoas saindo de becos e
descendo as ladeiras da Guabiraba. Vão saquear o comércio.
- E a
Polícia Militar, onde está a Polícia Militar!?
- Está
em greve, doutor Silvestre. Não tem uma viatura por perto.
Feito
duendes saídos de grotões, homens suados, mulheres com varizes à mostra nas
pernas e coxas, muitas com o filho entre as curvas da cintura e a intumescência
da barriga. Não gritavam, inda que abrindo a boca para ofegar contentes a
fraqueza do corpo súbito controlada pelo delírio de ter nas mãos um eletrodoméstico
com dobras luzidias. Um grito ou outro se ouvia de moços de bermuda, canelas
compridas e cinzentas, nos pés um par de tênis já estropiados, ainda aos
sopapos de quem se supunha quites com os costumes da moda. Não tinham trabalho,
aqueles moços, nunca lhes deram incumbência com prazo para começo e fim;
criam-se, pois, com energia bastante para pôr sob os braços ágeis, celulares e
toca-discos, com a desenvoltura suspeitada, só suspeitada, por quem, por isto
mesmo, lhes negara ocupação remunerada.
O
delegado teve tempo de pôr o revólver no coldre vazio; não abotoou o paletó,
mesmo lembrando-se do hábito de sempre fechá-lo antes de entrar na igreja para
o culto purgativo. Segurou na bíblia sem tirá-la da gaveta; o fluido
adstringente apertou-o de cima a baixo; ao fim, em vez de jungir os membros,
distendeu a medula espinhal.
Ordenou
que a viatura parasse em frente à loja de eletrodomésticos. Tirou o revólver do
coldre, os outros, no banco de trás, imitaram-no. Atirou para cima; o estampido
deu lugar ao estrépito, à gritaria. A última prateleira da loja ainda no mesmo
lugar, desabou no chão. O gerente, perplexo, olhou para o chão e para o rosto
com cismas de salvação do delegado.
O
delegado Silvestre ainda viu a última saqueadora saindo da loja, uma mulher com
estrias fundas nos cantos dos olhos, da boca e sob o queixo, carregando o
estrado de uma cama cujos lados ficaram para trás.
Dia
seguinte, uma romaria de saqueadores arrependidos entrou na delegacia com o
butim respectivo. Conduzidos por agentes com os revólveres à mostra, ouviram do
delegado Silvestre o anuncio de que a pena ser-lhes-ia comutada por outra
menor; voltaram para casa nus da pilhagem e do juízo.
A
mulher de rosto encarquilhado trouxe o estrado com a ajuda do neto. O delegado
perguntou-lhe se sabia rezar.
- Sei
sim sinhô. Mas tô com tanta vergonha que no momento num sei começá.
Ele
tirou a bíblia da gaveta e, pausado, recomendou:
- Vá
para a cela com esta bíblia, sente-se no estrado de cimento. Pode levar o
garoto. Quando recuperar a memória da oração, volte aqui e vá para
casa.
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