Três cavalos com sela e cada homem segurando um relho
Marco Albertim, no Vermelho
Não fosse a súbita aparição da velha com os
dois netos, nem a visita da filha incensando o brejo verdoso com o perfume de
seu Royal Briar temporão, o vale do Engenho Bento Velho teria sua planura rasa
só abanada pelos galhos do bambuzal em volta; o capim verde, com nós
entre as hastes, por certo estaria oscilando entre o balanço dos bambus e a
umidade fecunda na margem do riacho. Mesmo sem o balido de ovelhas, nem o
bimbalho de chocalhos no pescoço de uma rês ou outra, tão comuns nos alagadiços
da Zona da Mata, o vento sopraria morno, conchegando a terra e as gramíneas
miúdas de arroz ocultas no capinzal crescido.
A mulher subiu o barranco de acesso à casa de farinha. A velha, com os
netos de seu lado, não se agoniou para dar boas-vindas à filha. Os pirralhos se
desprenderam dela, inda que não se alvoroçassem para trocar o bodum
de mortalha no vestido da avó, pelo cheiro já bebido do fustão impreciso do
vestido da mãe.
Ela agachou-se para abraçar os dois de uma vez. Viu que nada mudara na
palidez morena do rosto de cada um. Beijou-os sem estalido nos lábios. Depois,
tirou de um dos ombros as alças da tiracolo de plástico florido, enfiou a mão
nos fundos e retirou-a com dois sacos fornidos de broas de milho. Os pacotes de
bolachas de farinha, entregou-os à velha; juntos, mais dois de farinha de milho
para o cuscuz. Por último, uma barra de queijo de manteiga cuja gordura colara
no papel de seda transparente; o gosto do queijo, já conhecido da família pela
azedia do amarelo-pardo da batata inglesa, era um petisco nunca recusado pela
fome muda dos meninos e da velha.
- Bença a mãe...
A mulher vinha roçando os quarenta anos; inda que não os tivesse
inteirados, os bicos piongos dos peitos, a base achatada
e meio gorda, davam conta de que metade de sua sustança se deixara extrair nos
apalpos das carnes. Quando pediu a bênção à velha, a indecisão da voz e o
desengonço da mão direita levantada com os dedos espremidos, tornaram-na tão submissa
quanto sinistra; olhou de través para os homens, e ficou ainda
mais canhestra.
O caminho que percorrera da estrada de piçarra, cruzando o vale em
direção a casa, fora reparado pelos olhos inertes do homem que a trouxera na
anca do cavalo. Não se despediram com palavras, nem trocaram acenos com os
olhos para o provável reencontro, visto que a cumplicidade carnal entre ambos
há muito se embutira nos sentidos.
Ela olhou para os homens sem esconder a estranheza nos olhos.
Os quinze homens não mais olhavam para a velha, dela já tinham ouvido o
bastante para conhecer-lhe os modos e o silêncio da boca fechada. Para não se
mostrar sem recato, olhou para o parelho que por trás de uma moita de bambu,
não afrouxara a rédea do cavalo para partir. Depois, mirou curiosa os homens
que tinham nos pés, na bandeja da casa de farinha, as lonas para fincar o
assentamento.
- Vão ficar aqui? - perguntou aos homens, sem ajuizar nenhum em
particular.
- Vamos aproveitar a estação pra deixar o arroz crescer, o arroz e os
caroços de feijão que nós vamos enfiar em cima das covas - respondeu
o mais velho, o mesmo que inquirira da velha sobre a maternidade dos meninos.
Tinha um chapéu de feltro na cabeça, inclinou-o para trás para não prensar a
mulher com sua voz sem variação de tom.
Ela não respondeu, mas o modo como olhou para o piso duro da casa de
farinha, deu conta de um agouro que podia vir da estrada de piçarra
vermelha. Entrou na casa junto com a velha e os filhos, levando as provisões
para a cozinha.
Os homens desceram o barranco carregando as lonas. As barracas foram
montadas em torno da vara em cuja ponta movia-se a bandeira do MST. Terminado o
trabalho no fim da tarde, subiram o barranco. Três cavalos com selas
mantinham-se quietos num dos oitões da casa. Ninguém se assustou, assuntando
mudos para os três homens, cada um segurando um relho. Sentados no tronco de
coqueiro estendido na frente da casa. A velha e os meninos não saíram. A mãe
sentara-se junto ao homem que a trouxera com os mantimentos.
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