Marcão
Bruno Albertim
A gente conhece o roteiro. Mas a
morte surpreende e costuma fazer o que a morte sabe fazer quando chega: revoa o
chão debaixo dos pés, enche os olhos da gente de terra, a mesma terra com a
qual a gente vai ter que enterrar o pai com alguma dignidade e sabedoria - e
ninguém estará pronto para enterrar o pai com terra vermelha.
A quem ainda não
sabe, um resumo dos últimos dias. Eu dormia aninhado na casa de Natara Ney na
Lapa, essa preta que ocupa cada vez mais porções na geografia do meu afeto,
quando o celular me acorda. À noite, assistiria a uma peça sobre perdas e o
patético niilista e inevitável da vida com a Cia Brasileira de Teatro e Renata
Sorrah para poder entrevistá-la em seguida. Como a vida é Beckett, não rolou.
Do outro lado da
linha, a voz de Guelo: meu pai morrera entre a noite da sexta e a madrugada do
sábado. Baixou a cabeça na mesa de um restaurante muito próximo de sua casa.
Nunca mais a levantou. Enfarto.
Apesar da angústia da
distância, não deixou de ter um significado especial saber que o grande Marcão,
meu pai sempre mítico, morrera quando eu me encontrava outra vez no Rio - a
cidade onde ele viveu parte importante da trajetória, o Rio de Janeiro onde
quase nasci antes de minha mãe decidir que seus filhos seriam pernambucanos
como ela, o Rio de Janeiro onde, hoje, a família se faz amiga e os amigos se
fazem família me dando a certeza de segunda pátria.
Mais simbólico foi
lembrar da noite recente e pregressa: depois de um show de Otto com amigos
daqui e de lá, gastar umas horas conversando com Xico Sá e uma turma lá pelos
cantos do Circo Voador sobre algo que movia a vida do meu pai: a literatura.
Sol alto lá fora, a
noite não havia propriamente acabado quando acordei.
O desespero de voltar
o mais rápido pro funeral, a busca por passagens, o vácuo da perda, um suco de
melancia com gengibre preparado por Natara.
De repente, a morte
começou a ser emoldurada por pequenos nacos de beleza e de amor. De Hanna e
Flavinha que correram de Copa para um abraço urgente. De Ju Rondon me
oferecendo abrigo, abrigo, abrigo - outra vez. Do meu tio preocupado. De Elaine
e Jura formando comigo um power trio para viver as mais longas horas cariocas
só me largando na hora de pegar o avião já na manhã de domingo pro funeral.
De Dani indo me
buscar no Recife com uma garrafa que tinha café, nenhum açúcar e muito afeto.
De Cléo, a filha linda de Ju, minha "parceira", mostrando com suas
bochechas o tanto de vida pela frente.
De minha mãe,
leonina, reatando o cordão umbilical sempre que necessário. Do banho de mar com
Lu na manhã seguinte. De Tereza, que se fez presente com um desenho de um gatinho
cacheado sendo amamentado por sua "segunda mãe" na carta mais bonita
que recebi sempre. Com Ed, Carol, Hilda, Guelo e as "brunetes" e suas
vocações intermináveis para a alegria-de-nós-que-nos-amamos-tanto. Com a fava
de Jaime.
Eu gostaria,
sinceramente, de poder agradecer nominalmente a cada um que me encheu com essa
onda de afeto, cada mensagem, cada abraço, cada certeza de que, enfim, tem
muita gente na torcida para que a vida siga grandiosa. Mas vou simbolizar meu
amor coletivo (à minha maneira, sou um coletivista como meu pai, de uma maneira
muito outra e particular, foi) em algumas pessoas.
Andrea Cavalcanti, e
sua resolutividade generosa, sua capacidade de nunca estar cansada para os
amigos. Meu grande irmão, Breno, pela capacidade madura, embora sofrida, de
resolver tudo na minha ausência. Simone, Rosa Muga,Maomé, Priscila e meus primos,
gente que me faz reentender o sentido da palavra família.
Os grandes irmãos que
meu pai teve em vida, de letras, de lutos, de lutas, de cruzes e vitórias.
Luciano Siqueira, certamente o homem público mais íntegro desse paralelo sul,
que falou diante de um túmulo aberto sobre a trajetória de Marco Aurélio
Albertim, um sujeito de classe média pernambucana que passou mais da metade da
juventude na clandestinidade brigando pela redemocratização do País. Luciano,
um dos caras que mais me ensinaram a entender quem foi meu pai - um sujeito de
silêncios gritantes e rompantes de barulhos, um sujeito de grandezas
revolucionárias e quase nenhum talento para os miúdos da vida.
Urariano Motta, outro
grande irmão, um escritor tão contundentemente elegante como meu próprio pai.
Um sujeito que, como ele, está aí para dizer que escrever é tão ou mais
importante que "viver".
Herdo - herdamos - as amizades paternais.
Herdo - herdamos - as amizades paternais.
A seu modo, meu pai
morreu feliz: tinha acabado de escrever um conto e esperava o lançamento do
segundo livro, também de contos.
Chamado Os operários
de Ingrid, o texto derradeiro é um relato durante a ditadura da fascinação de
militantes de um grupo comunista pela nudez da personagem. ‘A nudez de Ingrid
fora imaginada por todos nós. Nunca o dissemos. Tínhamos medo de infringir a
disciplina, e, mais ainda, não queríamos nos expor a censuras com base nos
cânones da luta de classes’, começa o texto.
Homem mais de fé nos
homens que nos deuses, ele será lembrado com uma missa de sétimo dia nesta
quinta, às 19h30, na Igrejinha da Praça de Boa Viagem.
Eu poderia descansar
mais alguns dias. Mas preferi ir me despedindo do meu pai de volta ao trabalho.
Fazendo do meu jeito - desejando um dia ter metade da elegância narrativa dele
- o que ele achava mais importante ser feito na vida: escrever.
Vai em paz, Marcão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário