21 junho 2015

Um gigante da literatura brasileira

Graciliano Ramos, um escritor comunista

José Carlos Ruy, no portal Vermelho
Poucos escritores brasileiros merecem, como Graciliano Ramos - cujo centenário foi comemorado em 27 de outubro de 1992 - a qualificação de clássico. Existem muitos, com obras de alto nível artístico que iluminam aspectos parciais dos sentimentos e modo de vida de nosso povo.
Porém nem todos conseguiram criar situações, tramas e personagens capazes de sintetizar as contradições típicas do desenvolvimento histórico e social e o reflexo dessas condições objetivas na subjetividade e na vida mental dos brasileiros.
Até que se tenha uma definição melhor, é a dialética do singular, do particular e do universal que torna uma obra clássica. Clássica porque extrapola os limites estreitos dessa particularidade e singularidade e se dirige a todos os homens, distantes no espaço e no tempo. É como se o escritor, ou o artista, descrevesse tipos humanos únicos, particulares, acrescentando-os ao imenso catálogo com representantes de todas as épocas e todos os povos, enriquecendo o registro da experiência histórica concreta da espécie humana em sua multifacética e rica variedade de manifestações sociais e existenciais.
Graciliano Ramos conseguiu registrar artisticamente os profundos conflitos humanos, a desorganização e reorganização da vida provocadas pelo impacto do desenvolvimento capitalista brasileiro partir da década de 1930, época em que a modernização da sociedade se acelerou sob a hegemonia conservadora. O modo de produção capitalista consolidou seu domínio sobre o conjunto da sociedade redefinindo as relações sociais e subordinando todas elas ao capitalismo, à lógica da acumulação e reprodução do capital.
Este é o quadro de transformações aceleradas e perturbadoras em que se movem personagens como Paulo Honório, Madalena, Luís da Silva, Julião Tavares, Fabiano, Sinhá Vitória e tantos outros.
Em seu destino pessoal eles representam também o destino das classes sociais. No ensaio Graciliano Ramos (1965) Carlos Nelson Coutinho escreveu: “Nesta fusão de indivíduo e classe reside um dos pontos mais altos do realismo de Graciliano. Seus personagens são sempre tipos autênticos precisamente na medida em que expressam em suas ações o máximo de possibilidades contidas nas classes sociais a que pertencem”. Destino pessoal e destino de classe confundem-se na trajetória de seus personagens.
Luís da Silva (Angústia, 1936) e Madalena (São Bernardo, 1934) são pequeno-burgueses inconformados com sua existência opressiva e alienada, desejosos de subir na vida, apavorados com a perspectiva de proletarização. Incapazes de compreender as forças que comandam seus destinos são também incapazes de lutar contra elas. Seus destinos melancólicos e trágicos são marcados pela impotência e pelo ressentimento.
Paulo Honório, o camponês que se tornou latifundiário (São Bernardo) e Fabiano (Vidas Secas, 1947) parecem encarnar dois destinos antagônicos para personagens de origem social semelhante.
Astuto, Paulo Honório consegue dominar as possibilidades de ascensão abertas pelo capitalismo. Negocia, trapaceia, abre caminho sem medir esforços nem escrúpulos. Usa o poder do dinheiro para - como um Fausto sertanejo – se impor à decadente oligarquia rural. Dedica sua vida a se tornar ele próprio um latifundiário. Consegue colocar-se acima de sua classe, como conclui no final do romance. Conseguiu tornar-se “um explorador feroz”, brutal e egoísta, como amargamente reconheceu.
A saga de Fabiano começa no mesmo ponto de onde Paulo Honório partiu: a estreita, pobre, mesquinha vida do camponês do Nordeste, massacrado pelo latifúndio e maltratado pela natureza.
Sua insatisfação - e dos seus - compara-se à animalidade da cachorra Baleia: querem apenas se manterem vivos e, depois, se possível, obter alguns modestos luxos, como a cama de couro que Sinhá Vitória queria.
Ao contrário de Paulo Honório, Fabiano busca seus meios de vida zanzando de fazenda em fazenda até que o destino - semelhante ao de multidões nordestinas - o coloca na estrada para a cidade e os centros industrializados do litoral e, depois, do Sul.
O mais miserável e mais rústico dos personagens de Graciliano é, contraditoriamente, o portador do futuro: na cidade ficará completa e acabada sua condição de vendedor da força de trabalho no mercado capitalista. Ele será um operário; seus filhos serão operários, num mundo novo com contradições de outra natureza, que só poderão ser superadas pela luta da classe operária e dos demais trabalhadores pelo socialismo.
Assim o destino de Fabiano indica o sentido do desenvolvimento da sociedade brasileira, dos trabalhadores brasileiros, colocando-os - juntamente com a sociedade - num novo patamar onde as contradições da vida rural e camponesa são superadas e substituídas pelas contradições próprias da sociedade capitalista.
Escritor comunista, o marxismo de Graciliano Ramos jamais lhe permitiu a subordinação às imposições normativas características do zdanovismo e seu realismo “socialista” na construção de suas obras.
Artesão exigente e minucioso do idioma, escritor enxuto, da palavra exata, a forma artística se subordinava nas obras de Graciliano à resolução do conteúdo.
O estilo memorialístico de São Bernardo, o obsessivo monólogo interior de Angústia, a aparente descontinuidade e fragmentação de Vidas Secas, subordinam-se rigorosamente às necessidades da trama, da exposição da psicologia do personagem, da criação do ambiente social e cultural onde eles se movem e da forma como esse ambiente externo, objetivo, se reflete em seu espírito condicionando-o e moldando suas ações.
Nas obras de Graciliano o socialismo emerge dessas contradições, como saída para os conflitos sociais e humanos retratados. Emerge de forma implícita, necessária, inscrita no desenvolvimento das situações e contradições descritas. Graciliano não caiu na tentação do populismo fácil e pseudo democrático praticado por tantos escritores de sua época, que reproduziram de forma maniqueísta a consciência popular. Eles não hierarquizaram as formas de manifestação dessa consciência., mas as abordaram de maneira acrítica e valorizando-as todas igualmente. Ora, a consciência dos homens reflete de forma muitas vezes alienada e distorcida as contradições da época em que vivem, enfrentadas no dia a dia. Se todos os homens tivessem espontaneamente uma consciência clara e precisa das condições de dominação, as sociedades divididas em classe nunca poderiam ter existido!
Na obra daqueles escritores populistas o socialismo aparece como um objetivo artificial, que não decorre da resolução da trama mas da mera vontade do escritor de colocar essa bandeira na boca dos personagens.
Estas são algumas das características que fazem de Graciliano Ramos um clássico, no sentido universal. Um escritor que não temia imposições e enfrentou as contradições colocadas pela vida. Que não buscou soluções literárias fáceis e artificiais para essas contradições. Que não tentou, de forma também artificial, resolver essas contradições em suas obras mas que escreveu pela necessidade de registrar, de forma artística, as dificuldades, mazelas e esperanças da vida de seu povo. E que, dessa forma, contribuiu como poucos para uma consciência mais profunda dos problemas da sociedade brasileira e das possibilidades que seu desenvolvimento promete. E ajudou a ampliar aquele catálogo de tipos humanos referido acima, de personagens característicos da vida nesta parte do mundo e num período da história: o contraditório período em que o modo de produção capitalista se tornou hegemônico na formação social brasileira.

Publicado originalmente em A Classe Operária, 26/10/1992

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