04 novembro 2017

Arte da vida

Joana Côrtes

O nosso pessoal do Recife: Amores de chumbo
Joana Côrtes, no Facebook

Comecei as férias vendo a estreia do filme Amores de Chumbo no Festival do Rio, da cineasta Tuca Siqueira, termino o descanso vendo a última exibição do filme que será feita hoje na Mostra de SP.
Tuca e eu nos conhecemos antes de nascermos, no dia em que mainha e Luci, a mãe dela, se encontraram em uma cela do Dops do Recife em 1974 e foram botadas, nuas, para lavarem juntas o banheiro sujíssimo do órgão de repressão da capital pernambucana.
Depois Luci levou roupas para mainha que, grávida, e com risco de aborto por conta das torturas, ficou sob guarda policial no Hospital Português e em seguida na casa da advogada de presas políticas Mércia Albuquerque. Quando mainha voltou para Aracaju, em dezembro de 1975, foi a vez das roupas do seu primeiro filho, Eduardo, servirem para Neguinha, a primeira filha de Luci, que acabara de chegar.
Nos cinco anos seguintes, nas viagens de mais de doze horas entre Aracaju e Recife que Ana Maria fazia para visitar mês a mês Bosco , meu pai, na prisão de Itamaracá, era na casa de dona Oneide, mãe de Luciano, pai de Tuquinha, que mamãe se abrigava. Lá havia o melhor feijão de todos, acolhimento e generosa solidariedade. Quando Marquinhos, o nosso irmão do meio nasceu com síndrome de Down, painho ainda na prisão, a mãe de Luci, Maria, se mandou para Aracaju para ficar dias com mainha. Não por acaso, Marcos até hoje é louco doido varrido pelo pessoal do Recife. Por que será?!
Nossos pais foram companheiros de prisão por um ano. Nossas mães, viúvas de maridos vivos, como se refere mainha as mulheres que têm seus companheiros presos. Tuca e eu somos filhas da liberdade. Ela nasceu em 1979, eu em 1980. Ela diz que eu bebia perfume quando era criança, eu só lembro das ruas de barro do Campo Grande e e do cravo na boca dos cabocos de lança envenenado dos maracatus, no primeiro carnaval que passamos em Olinda.
Os nossos álbuns de fotografia de infância e adolescência se misturam: o primeiro carnaval pernambucano de Eduardo adolescente, o primeiro luau todos juntas bicando whisky aos doze anos nas dunas do Mosqueiro, o pai de Tuquinha me levando de carro até a formatura, os quinze anos de Marquinhos foi uma viagem sozinho para o Recife.
A década de 80 e 90 foi de muito encontros e amadurecimentos e histórias juntas, quando não íamos para o Recife, nosso pessoal do Recife vinha até nós, em Aracaju. Era um dos raros momentos que via painho solto, mungangueiro, ao violão e mesa farta de café da manhã, entre os melhores amigos, Luci e Luciano.
Juntos, éramos e somos uma única família de amigos.
Com a nossa convivência, todos juntos, aprendi o que é amor e que família está onde permanece laços fortes de afeto, solidariedade, generosidade e comunhão. Nossas mãos se alcançam, sem cobranças e infortúnios. Até hoje festejamos por estarmos vivas.
Crescidas, nossos projetos se misturam. No documentário A Mesa Vermelha, sobre os presos políticos pernambucanos, Tuca começa o filme com painho lendo uma carta que fiz para ele se convencer a reencontrar os companheiros de cela depois de mais de trinta anos. As novas gerações têm o direito de saber. Enquanto eu lançava o livro Dossiê Itamaracá há dois anos no Recife, ela filmava Amores de Chumbo.
Não estava, não estávamos, não estamos sós. Mais de quarenta anos depois, não era mais Ana e Luci, era eu e Neguinha, a irmã mais velha de Tuca, compartilhando chão conversa abrigo alegria e aperreios durante os dois anos de pesquisa que fiz no Recife, vendo crescer seus filhos Pedro, Miguel e Alice, ao lado do seu companheiro Alexandre.
Pedro que me fez chorar, ele aos dezesseis, quando resolveu falar no lançamento do Dossiê no Recife. Tuca me fez chorar mais uma vez no início dessas férias, quando fiz questão de estar no Rio por todos da nossa família, na estreia de Amores de Chumbo: a cena em que uma das personagens principais dança ao som de Negro Amor.
Passei por Aracaju antes de voltar à labuta em São Paulo, e filmei mainha dançando a mesma música na sala da casa que sempre recebeu nosso pessoal do Recife. Porque eles são nossos, como somos dele. Nos pertencemos.
As mãos de mainha com o lenço vermelho ao vento, os cabelos mais brancos e longos que já a vi carregando, os pés de setenta e dois anos rodopiando o salão. A mulher que me diz, depois de perdermos duas tias em dois meses: ninguém fica pra semente, o importante é ter saúde e tocar o barco, minha filha.
Tuca, a filha de Luci, e mainha, e Gal, me dizendo: as pedras do caminho deixe para trás, esqueça os mortos que eles não levantam mais.
Risque outro fósforo, outra vida, outra luz, outra cor.
Mainha vivíssima, depois de tanta luta, topando qualquer parada, nesses tempos novamente difíceis, a dançar, e eu emocionada por estar ali, e podendo ser e seguir adiante. Com dignidade, cabeça erguida, coração aberto, irreverência, amizade entrelaçada e poesia em riste.
Tuca está certa: amar é resistir. E resistimos com muito amor, criação e arte, a experiência de viver.
Viva Anas e Lucis e Oneides e Marias e Tucas.
Vão ver Amores de Chumbo, hoje, na Caixa Belas Artes, em São Paulo, às 18h10.
Ano que vem o filme estreia em circuito nacional.

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