Bolsonaro inaugurou seu
desgoverno com devastação do Mais Médicos
A cota de responsabilidade do presidente pelas
consequências da pandemia vai muito além de suas suposições idiotas
Janio de Freitas,
Folha de S. Paulo
A cota de
responsabilidade de Jair Bolsonaro pelas consequências da pandemia,
no Brasil, vai muito além do atraso imposto por suas suposições idiotas —“muita
fantasia sobre coronavírus”, “muita histeria”— às medidas administrativas
urgentes. Ainda hoje muito distantes das necessárias. É uma responsabilidade
construída, a desse maior irresponsável entre os irresponsáveis.
Bolsonaro inaugurou seu desgoverno com a devastação do
Programa Mais Médicos. Por fanatismo ideológico e com uso de falsidades,
sustou um sistema de medicina comunitária que, desenvolvendo-se, agora dotaria
o desprovido interiorzão e a pobreza urbana de uma rede de combate aos horrores
ali possíveis, e mesmo previstos com autoridade.
A conduta dos chamados meios de comunicação nesse assunto foi
deplorável, desde o início, com o tema posto na campanha eleitoral.
Orientaram-se pela nacionalidade e não pelas qualidades que o programa tivesse.
Foram gerais o endosso e a propagação das acusações de que o governo cubano
apropriava-se de parte da remuneração dos seus médicos. Tanto que as
remunerações não eram feitas aos cubanos no Brasil, mas via Cuba. A própria
habilitação dos médicos, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde como das
melhores, foi questionada, pretendendo-se novos exames aqui.
A verdade é que o convênio Brasil-Cuba foi intermediado e
acompanhado pela OPAS, a Organização Pan-americana de Saúde. Mesmo com os
médicos cubanos já em atividade, a OPAS continuou em seu papel de instância
superior nas operações.
As verbas de remuneração foram mandadas a Cuba, via OPAS, para
assegurar a destinação parcial ao sustento das famílias dos médicos, como se
eles estivessem em seu país; e, quando era o caso, para as reposições do
financiamento à sua formação, como em tantos países.
Nada disso era segredo aqui. E, em dúvida, bastaria consultar o
convênio ou a OPAS. Mesmo a exclusão dos cubanos, e apesar do êxito do programa
por ninguém negado, teve tratamento passivo ou de apoio. Até grotescos no
passionalismo ideológico, como o de um comentarista que martela seus serviços
todos os dias em jornal, em rádio e na TV: “É muito fácil substituir os médicos
cubanos”. Nesse dia comecei a ler, curioso, para logo descobrir que a fórmula
eufórica da facilidade não era mais do que a convocação de brasileiros.
Ora, o Mais Médicos e a inclusão de estrangeiros vieram
solucionar a recusa dos brasileiros a exercer a medicina onde menos era, e
voltou a ser, alcançável. Neste março, dia 11, o ministro Luiz Henrique
Mandetta, da Saúde (?!), lançou mais um de sucessivos editais para preencher o
Mais Médicos. Nos anteriores, sempre a repetição: muitas inscrições, redução
grande na hora das apresentações e abandono do serviço médico em pouquíssimo
tempo, com volta à cidade de origem.
A etapa bem-sucedida do Mais Médicos deixou
histórias extraordinárias, que se perdem nas memórias dos personagens. Não daquelas
dezenas de milhares, se não centenas de milhares, que nunca haviam tido um
atendimento médico. E talvez nunca mais tenham. Milhares, sem sequer tempo para
sabê-lo: a mortalidade infantil cresce pavorosamente em lugares roubados do
médico que a reduzira ou eliminara.
Há condutas de governantes que não figuram nos Códigos Penais,
mas têm tudo de crimes. Crimes contra a humanidade.
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