Feminismo: uma luta civilizatória
Edilson
Silva
Em seus oitenta mil anos de percurso na trajetória humana, o homo sapiens
acabou legando para suas fêmeas um papel subordinado e de oprimidas na relação
entre os gêneros. A produção da força física do macho foi construindo
paralelamente um sistema de poder ao mesmo tempo sofisticado e bruto em seu
favor: o patriarcado.
Há vários caminhos a se percorrer para explicar como se chegou até esta
situação, mas o fato é que o patriarcado foi construído e se reproduz em
praticamente todas as culturas humanas, como se fosse algo natural ou mesmo
divino.
E este sistema de dominação foi construído sobre as maiores barbaridades
impostas às mulheres. Eram queimadas em fogueiras, acusadas de bruxaria, todas
as que ousassem mostrar sabedoria, liderança, ou qualquer qualidade que lhes
dessem notabilidade ou servissem de exemplo às demais mulheres ou às novas
gerações.
Assim o fizeram com Hipácia de Alexandria (355-415 DC), para ficar num
único e revoltante exemplo. Mulher sábia, cientista das mais brilhantes de seu
tempo, foi tomada por uma turba obscurantista que a esquartejou e raspou a
carne de seu corpo com cascas de ostras. Ao longo desta história, a resistência
da mulher contra este sistema é uma constante. Elas sempre lutaram. E muito.
Contudo, foi preciso que o movimento da história, nos seus conflitos e
sínteses entre a realidade e a consciência humana, produzisse as condições para
que a luta das mulheres avançasse. Todos os movimentos de emancipação e de
iluminação da humanidade contra obscurantismos, nas ciências, na filosofia, na
política, no direito, conspiraram ao mesmo tempo contra o patriarcado,
tornando-o cada dia mais indefensável em suas barbaridades.
As mulheres então avançaram com seu feminismo, que, apesar das múltiplas
faces que assume, busca em essência o direito à igualdade com justiça entre os
gêneros. Esse avanço é desigual a depender das culturas humanas, mas podemos
afirmar com muita certeza que o patriarcado ainda hegemoniza as relações
sociais mesmo onde o movimento feminista mais avançou. A emancipação real ainda
está no horizonte.
Mas o mesmo movimento da história que construiu condições objetivas para
a luta pela emancipação feminina, também pode apresentar contradições como a
que assistimos hoje no Brasil, por exemplo. Diante das múltiplas crises que a
sociedade contemporânea nos impõe, amplos segmentos sociais se veem arrebatados
por uma utopia conservadora e até reacionária. Querem voltar ao passado.
Questões como desemprego, drogas e violência do narcotráfico, a
criminalidade, e até a abertura do armário para a população LGBT, por exemplo,
são combatidos por este pensamento com uma única palavra: família.
A palavra família tem um endereço e objetivo precisos neste contexto:
recolocar as mulheres pra “dentro de casa”, numa relação tradicionalíssima “papai/mamãe/filhos”, cuidando dos filhos, dos afazeres domésticos, do marido,
dos idosos, dos doentes. Para as mulheres mais pobres e negras, o destino é o quartinho
da empregada e a semiescravidão. Na visão desses “conservadores”, os graves
“desajustes” sociais são culpa do feminismo, que, segundo eles, como parte das
esquerdas, desestruturou esta família.
Essa mentalidade atrasada não se contenta em ver as mulheres cumprindo
duplas e triplas jornadas, ou mesmo assumindo majoritariamente ou de maneira
solo o cuidado com os filhos de relações divorciadas. Não se contenta em vê-las
cuidando da população carcerária nos dias de visita, cuidando dos doentes em
hospitais com poucos funcionários, assumindo sozinhas os filhos com
deficiência, cumprindo assim um papel não remunerado que seria inclusive do
Estado.
Essa luta está perigosa, pois o crescimento do fundamentalismo religioso
apresenta ESTA família como um projeto de Deus, algo que desdiz a igualdade
jurídica que as mulheres já conquistaram. Pior: abre espaço na imaginação
doentia do patriarcado para supor que pode existir até alguma virtude ou
salvação diante de um feminicídio.
A luta feminista então se confunde com a defesa da vida, da ciência, da
modernidade, pois para fazer recuar a mulher, precisam recuar também toda a
compreensão humana sobre o nosso nível civilizatório. Não é uma luta apenas das
mulheres, portanto.
*Edilson Silva é presidente da UNEGRO no Recife e foi deputado estadual
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