02 março 2021

Bandeira estratégica

Feminismo: uma luta civilizatória

Edilson Silva

 

Em seus oitenta mil anos de percurso na trajetória humana, o homo sapiens acabou legando para suas fêmeas um papel subordinado e de oprimidas na relação entre os gêneros. A produção da força física do macho foi construindo paralelamente um sistema de poder ao mesmo tempo sofisticado e bruto em seu favor: o patriarcado.

Há vários caminhos a se percorrer para explicar como se chegou até esta situação, mas o fato é que o patriarcado foi construído e se reproduz em praticamente todas as culturas humanas, como se fosse algo natural ou mesmo divino.

E este sistema de dominação foi construído sobre as maiores barbaridades impostas às mulheres. Eram queimadas em fogueiras, acusadas de bruxaria, todas as que ousassem mostrar sabedoria, liderança, ou qualquer qualidade que lhes dessem notabilidade ou servissem de exemplo às demais mulheres ou às novas gerações.

Assim o fizeram com Hipácia de Alexandria (355-415 DC), para ficar num único e revoltante exemplo. Mulher sábia, cientista das mais brilhantes de seu tempo, foi tomada por uma turba obscurantista que a esquartejou e raspou a carne de seu corpo com cascas de ostras. Ao longo desta história, a resistência da mulher contra este sistema é uma constante. Elas sempre lutaram. E muito.

Contudo, foi preciso que o movimento da história, nos seus conflitos e sínteses entre a realidade e a consciência humana, produzisse as condições para que a luta das mulheres avançasse. Todos os movimentos de emancipação e de iluminação da humanidade contra obscurantismos, nas ciências, na filosofia, na política, no direito, conspiraram ao mesmo tempo contra o patriarcado, tornando-o cada dia mais indefensável em suas barbaridades.

As mulheres então avançaram com seu feminismo, que, apesar das múltiplas faces que assume, busca em essência o direito à igualdade com justiça entre os gêneros. Esse avanço é desigual a depender das culturas humanas, mas podemos afirmar com muita certeza que o patriarcado ainda hegemoniza as relações sociais mesmo onde o movimento feminista mais avançou. A emancipação real ainda está no horizonte.

Mas o mesmo movimento da história que construiu condições objetivas para a luta pela emancipação feminina, também pode apresentar contradições como a que assistimos hoje no Brasil, por exemplo. Diante das múltiplas crises que a sociedade contemporânea nos impõe, amplos segmentos sociais se veem arrebatados por uma utopia conservadora e até reacionária. Querem voltar ao passado.

Questões como desemprego, drogas e violência do narcotráfico, a criminalidade, e até a abertura do armário para a população LGBT, por exemplo, são combatidos por este pensamento com uma única palavra: família.

A palavra família tem um endereço e objetivo precisos neste contexto: recolocar as mulheres pra “dentro de casa”, numa relação tradicionalíssima “papai/mamãe/filhos”, cuidando dos filhos, dos afazeres domésticos, do marido, dos idosos, dos doentes. Para as mulheres mais pobres e negras, o destino é o quartinho da empregada e a semiescravidão. Na visão desses “conservadores”, os graves “desajustes” sociais são culpa do feminismo, que, segundo eles, como parte das esquerdas, desestruturou esta família.

Essa mentalidade atrasada não se contenta em ver as mulheres cumprindo duplas e triplas jornadas, ou mesmo assumindo majoritariamente ou de maneira solo o cuidado com os filhos de relações divorciadas. Não se contenta em vê-las cuidando da população carcerária nos dias de visita, cuidando dos doentes em hospitais com poucos funcionários, assumindo sozinhas os filhos com deficiência, cumprindo assim um papel não remunerado que seria inclusive do Estado.

Essa luta está perigosa, pois o crescimento do fundamentalismo religioso apresenta ESTA família como um projeto de Deus, algo que desdiz a igualdade jurídica que as mulheres já conquistaram. Pior: abre espaço na imaginação doentia do patriarcado para supor que pode existir até alguma virtude ou salvação diante de um feminicídio.

A luta feminista então se confunde com a defesa da vida, da ciência, da modernidade, pois para fazer recuar a mulher, precisam recuar também toda a compreensão humana sobre o nosso nível civilizatório. Não é uma luta apenas das mulheres, portanto.

*Edilson Silva é presidente da UNEGRO no Recife e foi deputado estadual


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