Em
meio a pressão de CPI e protestos maiores contra o governo, presidente segue
estratégia de agir contra regras e leisGéssica Brandino e Renata Galf, Folha de S. Paulo
Alvo da CPI da
Covid no Senado, de manifestações que vêm
ganhando adesão e com pesquisas pouco favoráveis à reeleição em
2022, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) continua repetidamente
apresentando condutas passíveis de enquadramento criminal ou de crime de
responsabilidade.
Nesta
quarta-feira (30) está prevista a entrega de
um superpedido de impeachment que deverá apontar mais de 20
tipos de crimes cometidos por Bolsonaro ao longo do mandato.
De acordo com
levantamento feito pela Folha e de
consultas a especialistas em direito penal e constitucional, apenas nas últimas
três semanas há pelo menos dez tipos de situações em que o presidente cometeu
crimes comuns ou de responsabilidade. Em algumas situações, a avaliação é que
podem ter ocorrido os dois tipos de condutas.
Alguns casos
já são roteiros conhecidos, como a alegação do presidente
sobre fraude eleitoral nas eleições ou aglomerações e
cumprimentos a pessoas sem uso da máscara. Outros são inéditos, como quando retirou o acessório de uma
criança após pegá-la no colo durante evento no Rio Grande do
Norte.
Há também
inovações em atitudes já comuns, como a de desinformação: além de continuar
defendendo o tratamento precoce contra a Covid-19, Bolsonaro passou a afirmar
que pessoas imunizadas ou que já tenham contraído o coronavírus não precisam usar máscara.
Também disse que o uso do item de proteção seria prejudicial a crianças.
Para embasar sua teoria já antiga de supernotificação de
mortes pela Covid, Bolsonaro utilizou dados inexistentes de que o TCU (Tribunal
de Contas da União) teria concluído que 50% das mortes por coronavírus teriam
sido por outras doenças. Desmentido pelo
órgão, o presidente chegou a voltar atrás, mas
continuou citando um suposto relatório do TCU em discursos públicos.
Destes casos
recentes, a maioria das condutas listadas de Bolsonaro poderia ser enquadrada como crime de
responsabilidade por serem incompatíveis com "a dignidade,
a honra e o decoro do cargo", de acordo com os especialistas.
No entanto,
como este tipo é mais aberto, parte deles faz a ressalva de que muitos dos atos
considerados como quebra de decoro isoladamente não seriam suficientes para
justificar a remoção de um presidente do cargo.
Em outras
situações, além de possíveis crimes de responsabilidade, há posição majoritária
de que o presidente estaria cometendo crimes comuns como o de infração de
medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, ou até
mesmo o crime de expor a vida ou a saúde de um terceiro a perigo direto e
iminente, previsto no artigo 132.
Para Antonio
Santoro, professor de direito processual penal da UFRJ (Universidade Federal do
Rio de Janeiro), um dos problemas principais é que Bolsonaro age como se não
estivesse submetido às leis. "O fato é que o Bolsonaro descumpre
constantemente todas as determinações, inclusive de autoridades sanitárias em
relação à pandemia, porque ele entende que ele é presidente da República."
Apesar de
episódios de aglomeração sem máscara terem se repetido diversas vezes nas
últimas semanas, eles foram contabilizados como uma possível situação de crime
no levantamento.
Para o
professor de direito penal da USP Victor Rodriguez, as condutas de Bolsonaro
isoladamente não seriam justificativa legal suficiente para retirá-lo do cargo,
mas as condutas reunidas e reiteradas, sim. Para ele, seria possível reunir as
diversas condutas de quebra de decoro em um único pedido, "comprovando que
ele sinaliza um desprezo pela gravidade da pandemia", argumenta.
Já no caso em
que retirou a máscara de uma criança, parte dos entrevistados entende que além
do crime de infração de medida sanitária, o ato é passível de ser enquadrado
como crime de expor a vida ou saúde de alguém em perigo, pois há um perigo
concreto.
Para o
advogado criminalista Renato Vieira, o simples fato de o presidente saber que
expõe as pessoas a perigo com tais atos já configura o crime. Apesar de ter
sido o posicionamento minoritário, há também quem considere que seria preciso
que o presidente soubesse estar contaminado para tal configuração estar
caracterizada.
A professora
de direito constitucional da UFRJ Carolina Cyrillo considera o episódio com a
criança como um exemplo em que o presidente aumentou o tom. "Ele subiu o
padrão de conduta, talvez não discursivo, mas de ação. Ele passou a sair do
discurso para a ação em relação a isso."
No episódio do suposto
relatório do TCU, por exemplo, a maioria dos entrevistados não vê
crime de responsabilidade ou crime comum, apesar de apontarem a gravidade de o
presidente disseminar este nível de desinformação.
Também são
consideradas graves as falas relativas a fraudes em
eleições, sem que seja apresentada nenhuma evidência, e as ameaças veladas em relação
a 2022.
A presidente
do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Marina Coelho,
considera como possíveis crimes de responsabilidade apenas as acusações de
fraudes. "Acho que o mais grave é ele falar que teve fraude, porque isso
impacta diretamente em questões concretas."
Sobre 2022,
para ela, seria preciso ter perspectiva concreta de ações que Bolsonaro estaria
tomando em relação a isso e que não fossem democráticas, o que não seria o caso
do debate legislativo sobre o comprovante impresso do voto eletrônico.
Em relação à
desinformação sobre medidas de combate da pandemia, há maior discordância entre
os especialistas.
Uma parcela
maior considera que falas sobre suposto tratamento precoce ou com informações
questionadas amplamente pela comunidade científica sobre a vacina ou de que
pessoas que já tiveram a doença estariam imunizadas podem ser consideradas
crime de responsabilidade, por serem incompatíveis com o cargo.
Já falas contra jornalistas
mulheres, como as que ocorreram recentemente em que o presidente
chegou a dizer a uma jornalista para que ela nascesse de novo e que ela só
fazia perguntas idiotas, ou quando mandou uma repórter calar a
boca, foram considerados tanto crime de responsabilidade quanto
possíveis crimes contra a honra.
O professor de
direito constitucional da UnB (Universidade de Brasília) Mamede Said Maia Filho
diz que a pressão vinda pela CPI e os atos que pedem o impeachment
potencializaram o nível de agressividade de Bolsonaro. “Ele acusou o golpe
[contra o sistema eleitoral], claramente. Isso se intensifica mais ou menos a
partir da decisão do Supremo sobre o Lula, que é um adversário que concorre de
igual para igual com ele."
Para a
professora de direito penal da FGV, Raquel Scalcon, o presidente constantemente
viola o artigo da quebra de decoro, por ser um tipo mais amplo. Ela destaca,
contudo, que é preciso se atentar ao fato de que muitos brasileiros apoiam tais
falas.
"O fato é
que nós temos um outro problema, que é por que muitos eleitores do Brasil
realmente se sentem representados por este tipo de discurso violento e não
democrático. Temos um problema muito maior se isso é ou não crime", diz.
Veja abaixo
situações nas últimas três semanas que poderiam ser enquadradas como crime de
responsabilidade ou crime comum.
SAÚDE PÚBLICA E CRIMES COMUNS
1. Aglomerações (diferentes episódios)
Cumprimentar
pessoas sem máscara e promover aglomerações sem observar medidas sanitárias. Em
junho, isso ocorreu em agendas públicas nos estados de Goiás, Espírito Santo, São Paulo, Pará, Rio Grande do Norte e Santa Catarina
- Artigo
268 do Código Penal: Infringir determinação do poder público, destinada a impedir
introdução ou propagação de doença contagiosa. Pena: detenção, de um mês a
um ano, e multa.
- Artigo
9 da Lei 1079/1950: Crime de responsabilidade, quebra de decoro
2. Incentivar que terceiro retire máscara
24.jun:
Bolsonaro indicou a uma menina que tirasse a máscara do rosto, em evento em
Jucurutu (RN)
- Artigo
268 do Código Penal e Artigo 9 da Lei 1079/1950
3. Retirar máscara de terceiro
24.jun:
Em evento em Jucurutu (RN), Bolsonaro retirou a máscara de proteção de uma
criança
- Artigo
132 do Código Penal: Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e
iminente. Pena: detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui
crime mais grave.
- Artigo
9 da Lei 1079/1950
CRIMES DE RESPONSABILIDADE
4. Acusações sobre fraude eleitoral, sem apresentar provas
(diferentes episódios)
9.jun:
"Eu fui eleito [em 2018] no primeiro turno, eu tenho provas materiais
disso, mas o sistema, a fraude que existiu, sim, me jogou para o segundo
turno"
17.jun:
"Mais que desconfio, eu tenho convicção [de] que realmente tem fraude. As
informações que nós tivemos aqui —talvez a gente venha a disponibilizar um dia—
é que, em 2014, o Aécio ganhou as eleições, em 2018, eu ganhei em primeiro
turno"
5. Ameaças veladas sobre 2022 (diferentes episódios)
17.jun:
"Vamos respeitar o Parlamento brasileiro. Que, caso contrário, teremos
dúvidas [nas] eleições e podemos ter um problema seríssimo no Brasil. Pode um
lado ou outro não aceitar, criar uma convulsão no Brasil."
21.jun:
"Só na fraude o nove dedos volta. Agora, se o Congresso aprovar e
promulgar [a PEC], teremos voto impresso. Não vai ser uma canetada de um
cidadão como este daqui, que não vai ter voto impresso. Pode esquecer isso
daí"
7. Desinformação sobre a vacina e máscara (diferentes episódios)
9.jun:
"[Remédios do chamado tratamento precoce] não têm comprovação científica.
E eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado
experimental ainda? Está [em estado] experimental"
10 .jun:
“Ele [Queiroga] vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscara
por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados para
tirar este símbolo que, obviamente, tem a sua utilidade para quem está
infectado"
15.jun:
"Então, olha só, a pessoa que tomou vacina, se alguém quer que ela não
seja dispensada do uso de máscara, essa pessoa não acredita na vacina. É uma
pessoa, aí sim, negacionista", em entrevista via internet à RIC TV, afiliada
da Record em Rondônia. Disse também que a Pfizer "tem bem mais
credibilidade que uma outra que foi distribuída há pouco tempo aqui e continua
sendo distribuída".
24.jun:
Ao falar contra o uso de máscaras por crianças pequenas, de 2 ou 3 anos,
afirmou: "Pergunte para o seu médico se isso é saudável ou não. Procure
puxar a máscara e ver se ela está respirando pela boca ou pelo nariz. Se eu
estiver errado, semana que vem eu me desculpo aqui, tá?", em live semanal
8. Defesa do tratamento precoce (diferentes episódios)
11.jun:
“Tomei a hidroxicloroquina. Talvez eu tenha sido o único chefe de Estado que
procurou um remédio para esse mal.", em evento no Espírito Santo.
21.jun:
“Tudo o que eu falei sobre a Covid, infelizmente, para vocês, deu certo.
Tratamento precoce salvou a minha vida. Muitos jornalistas falam comigo
reservadamente que usaram hidroxicloroquina e ivermectina. Por que vocês não
admitem isso?”
9. Fala incompatível com o cargo (diferentes episódios)
28.jun:
"LÁZARO: CPF CANCELADO!", escreveu o presidente em uma rede social,
após a polícia capturar e matar o criminoso. Antes havia escrito, em rede
social, que "Lázaro, no mínimo preso, é questão de tempo".
·
Crimes
de responsabilidade, conforme a Lei 1079/50 e artigo 85 da Constituição Federal
de 1988, em sua maioria por conduta incompatível com o decoro do cargo ou
também por agir contra a probidade na administração. Em alguns destes
episódios, especialistas apontaram outros artigos da lei de impeachment e até
mesmo crimes comuns, mas essas posições foram minoritárias.
10. Ataques contra a imprensa (diferentes episódios)
21.jun:
"Essa Globo é uma merda de imprensa. Vocês são uma porcaria de imprensa.
Cala a boca, vocês são uns canalhas", disse o presidente durante agenda em
Guaratinguetá, no interior paulista.
25.jun:
“Para de fazer pergunta idiota, pelo amor de Deus, nasça de novo você.
Ridículo, tá empregada onde? vamos fazer pergunta inteligente, pessoal”, disse
Bolsonaro para uma jornalista em Sorocaba.
- Artigo
9 da Lei 1079/1950: Crime de responsabilidade, quebra de decoro
- Artigo
139 de Código Penal: Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua
reputação. Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa.
.
Veja: A CPI continua botando mais
caroço para o indigesto angu de Bolsonaro https://bit.ly/3dkvSvC
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