15 abril 2022

Crônica da sexta-feira

Notas sobre o ser humano e o mundo

Ronaldo Correia de Brito*, em seu site

 

Aprendi a ler na História Sagrada, uma seleta de textos do Antigo e do Novo Testamento, ilustrada por Gustave Doré. Durante muito tempo esse foi o único livro em nossa casa, o que já era muito. Sempre considerei a Bíblia um compêndio de narrativas, sem atribuir-lhe qualquer significado religioso. Li esse livro com o mesmo deleite com que li Odisséia, Ilíada, Mahabharata e Ramayana.

A leitura da Bíblia e a escuta das histórias de tradição oral marcaram minha escrita. Nós, da latitude Nordeste, precisamos resolver um impasse entre o legado oral e nossa formação literária escrita.  Guimarães Rosa também precisou resolver isso e o próprio Mário de Andrade reconheceu nesse impasse uma questão fundamental da literatura no Brasil.

Acho que desde menino fantasiei ser um narrador anônimo e ainda pequeno era convidado para recontar as narrativas que lia. Durante anos, estudei as técnicas de construção das narrativas bíblicas, sobretudo os diálogos, e descobri ritmos particulares, falas surpreendentes, uma estrutura complexa e contemporânea.

A transtradução ou transcriação do Qohélet, feita por Haroldo de Campos, é para mim uma soberba contribuição à poesia brasileira.

Desejava provar que o homem é o mesmo, onde quer que ele esteja. A realidade que vivemos agora nos provou isso. Kurosawa adaptou para o cinema duas tragédias de Shakespeare: Ran – baseado no Rei Lear – e Trono manchado de sangue –, inspirado em Macbeth. É surpreendente como Kurosawa alcança a mais alta representação da cultura do seu país, o Japão, nos dois filmes. No entanto, estão ali os dramas humanos – a ambição, a inveja, o ódio, o medo – revelados por um dramaturgo inglês.

Li os escritores russos com devoção. Não apenas Dostoiévski, mas também Tolstoi, Gogol, Tchekhov e Turguêniev. Acho a Rússia muito parecida com o Brasil. Mas ocupo-me com a invenção da fala dos meus personagens de um jeito que não reconheço nos romances russos.

A literatura contemporânea se ocupa de migrantes e ciclos migratórios porque está na ordem do dia a compulsão pelo deslocamento. No romance Galiléia refiro os escritores viajantes e os sedentários, da classificação de Walter Benjamin. Pertenço à segunda categoria e estou sempre me perguntando por que ninguém para mais quieto.

O que mais respeito numa pessoa é sua capacidade de pensar o mundo em que vive, ou pensar sobre si mesma. Conheci homens que nunca saíram de suas cidadezinhas e são capazes de observar e pensar. Outros viajam e não fazem mais do que tirar fotografias. Machado de Assis nunca deixou o Rio de Janeiro e escreveu a obra que conhecemos. João Cabral viajou muito, mas sua referência é sempre Pernambuco e o Recife.

*Médico, dramaturgo, escritor


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