26 abril 2022

Crônica da segunda-feira

Na feira da Tacaratu

Luciano Siqueira

 

Não me lembro exatamente o mês, nem o ano: talvez 1970, início da minha militância clandestina. 

Segui em viagem um tanto cansativa, cujo lance final se deu na carroceria de uma caminhonete dessas que transportam mercadorias e gente para as feiras no interior. 

Destino: Tacaratu, pequena cidade pernambucana limítrofe com Floresta e Petrolândia, fronteiriça com Alagoas. 

Missão: encontrar um camarada que viria de Água Branca, sertão alagoano.

Conversaríamos exatamente o que já não recordo, porém é certo que dizia respeito às atividades conspiratórias na resistência à ditadura militar.

Eu deveria parecer um feirante comum. 

Daí conduzir uma grande bolsa de viagem na qual reunira sabonetes, pentes e escovas de cabelo e outros produtos semelhantes. 

Se abordado pela polícia política, nada mais natural do que viajar por aquelas bandas no intuito de deitar minha mercadoria sobre uma lona e negociar como qualquer vendedor de feiras. 

Porém o encontro não aconteceu. O camarada que viria das bandas das Alagoas furou o ponto. 

Entretanto, eu esperei até o final da tarde. Com um detalhe: não me animei a exercitar o inexistente talento de vendedor. 

Tendo encontrado umbu em profusão e a preço de quase nada, comprei duas porções avantajadas contidas em saco plástico e passei quase que o dia inteiro a saborear aquela que é uma das minhas frutas cítricas de preferência. 

Se a repressão política estivesse rondando a área, provavelmente teria a atenção despertada para aquele jovem sujeito em nada parecido com os interioranos, sentado num canto, em isolado silêncio e a saborear uns bons dois quilos de umbu. 

Ao final, em fim de feira, recolhi-me novamente à carroceria de uma caminhonete e fiz um longo percurso de volta ao Recife, onde chegaria na manhã seguinte cansado, porém convicto da missão cumprida.

Sem qualquer efeito prático, salvo a estreia no que viveria por uns bons quatro anos, depois convertido em vendedor ambulante de roupas. De verdade.

.

O sentido dos fatos em poucas palavras https://bit.ly/3n47CDe   

Um comentário:

Anônimo disse...

Porque recordar é viver — particularmente quando a recordação nos traz ensaios da luta, essência da vida!!!