A nova fase das Big Techs: elas saíram das coxias e subiram no palco político global
Os anúncios recentes de Mark Zuckerberg redefinem o combate à desinformação ao questionar a própria existência do problema
Nina Santos/Le Monde Diplomatique
Diferentemente dos meios de comunicação, que sempre tiveram um papel editorial ativo e foram debatidos publicamente, até muito recentemente as plataformas digitais se aproveitavam de um conveniente jogo na forma de se apresentar socialmente. Por um lado, elas se colocavam como neutras, fornecedoras de infraestrutura, baseando-se na ideia original de plataforma como uma superfície plana sobre a qual diferentes coisas podem ser construídas. Por outro lado, as plataformas também se apresentavam como guardiãs do bom funcionamento do mundo digital, desenvolvedoras de políticas para suas comunidades e defensoras da chamada autorregulamentação, que seria um dos pilares do funcionamento de seus negócios.
O anúncio feito no último dia 7 de janeiro por Mark Zuckerberg, CEO da Meta, empresa responsável por redes digitais como Facebook, Instagram e WhatsApp, mostra que estamos entrando em uma nova era de posicionamento das Big Techs como atores explicitamente políticos. Ao anunciar a aliança com o governo Trump contra intentos regulatórios, o fim de parcerias com checadores de fatos e a adoção de uma visão de liberdade de expressão, Zuckerberg deixa claro que seu interesse não está apenas em gerenciar suas plataformas, mas em fazer com que essa gestão impacte o cenário político mundial. O CEO da Meta não está sozinho nesse movimento. Muito antes dele, o bilionário Elon Musk, dono da rede X (antigo Twitter), já havia a ssumido esse papel de ator político ativo, influenciando, inclusive, pleitos eleitorais nos EUA e em outros países.
Esses acontecimentos são graves. Por um lado, há retrocessos no funcionamento interno dessas plataformas, como apontado no anúncio de Mark Zuckerberg, que apresentou, ao menos, quatro pontos centrais: 1) afrouxamento das regras para moderação de conteúdo, especialmente relacionadas a questões de imigração e gênero; 2) fim das parcerias com checadores de fatos e a adoção da lógica de “notas da comunidade”, em que as próprias pessoas, de acordo com seus critérios pessoais, podem comentar sobre a suposta veracidade ou não de um conteúdo; 3) ajustes algorítmicos na distribuição de conteúdo, especialmente o político, com impactos ainda incertos; 4) ataques à imprensa tradicional.
Há, contudo, uma novidade perigosa que vai além do que se passa dentro das redes. Agora, o que está acontecendo não é apenas uma mudança nas políticas internas das plataformas, mas um reposicionamento na forma como elas próprias veem seu papel social. Cada vez mais, deixam de se apresentar publicamente como simples plataformas de conteúdos de terceiros e passam a se assumir como atores políticos abertamente ativos em eleições, governos e disputas regulatórias. Se ainda restava alguma dúvida, o anúncio de Zuckerberg, somado às ações de Musk, comprova que as Big Techs são atores políticos ativos orientados a defender seus próprios interesses e visões de mundo, e não o interesse público.
O que isso muda no combate à desinformação?
Muitas análises têm se centrado, com razão, em mostrar como essas novas medidas devem aumentar a circulação de desinformação. De fato, essa visão irrestrita de liberdade de expressão, colocada acima de outros direitos, e as tentativas de deslegitimação do jornalismo de interesse público tendem a tornar o terreno ainda mais fértil para a desinformação. Isso tudo é muito grave e tem o potencial de tornar os ambientes internos das redes ainda mais problemáticos do que já são hoje.
Mas o fato é que, até aqui, as cobranças sobre as plataformas digitais em relação à circulação de desinformação dentro delas se centraram essencialmente em quatro eixos: 1) moderação de conteúdo e outras metodologias de contenção da circulação de conteúdos nocivos; 2) ofertas de conteúdos checados por serviços de verificação profissionais; 3) formas de incentivo à circulação de informação de qualidade; 4) transparência nas ações de moderação, nos conteúdos pagos e no funcionamento dos algoritmos. Ou seja, basicamente, medidas que partem do pressuposto de que a desinformação existe, é um problema e é preciso encontrar formas mais efetivas de combatê-la nesse novo cenário comunicacional.
O que os novos acontecimentos mostram é que o problema pode ser muito mais profundo. O fato de as plataformas se assumirem como atores políticos ativos, com uma visão de liberdade de expressão irrestrita atrelada à ideia de que o combate à desinformação é uma forma de censura, evidencia mais uma vez que o problema pode ir muito além do que acontece dentro das plataformas. Se, até aqui, a postura delas foi a de dizer que estavam fazendo tudo o que podiam para combater conteúdos nocivos — mesmo sem nunca fazer o suficiente —, agora sequer parecem reconhecer que faça sentido considerar esses conteúdos como nocivos. Fica cada vez mais explícito o que várias pesquisas já têm mostrado: a questão da desinformação é muito mais política do que de comunicação.
Frente a isso, o que é possível fazer?
Embora existam, em toda parte, sugestões de que as pessoas deveriam simplesmente se retirar dessas plataformas digitais, isso me parece uma falsa solução. Trata-se de uma ação possível para poucas pessoas. Entendo que os serviços das plataformas de comunicação digital, hoje um oligopólio das Big Techs, fazem parte da nossa estrutura social e, por isso, não é factível deixar de usá-las. Simplesmente abrir mão disso me parece uma ação à qual apenas uma pequena elite pode se dar ao luxo. É preciso ter clareza de que essas empresas não são imparciais nem neutras.
Precisamos, portanto, encontrar formas de disputar essa nova realidade comunicacional sem negar a centralidade dela hoje. É necessário fazer isso sabendo que o digital é, mais do que nunca, um espaço em disputa. Isso significa que é preciso discutir seriamente as regras para os ambientes comunicacionais atuais. A maneira como eles funcionam pauta hoje a lógica social de qualquer país. Trata-se de um tema essencial para a soberania nacional. Sem essa disputa estamos desistindo de fazer com que as decisões das nossas cortes, as leis do nosso parlamento e as ações do nosso executivo sejam os balizadores da vida digital, que aliás, nunca foi tão real.
Nina Santos é diretora do Aláfia Lab, coordenadora do *desinformante e pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD).
instagram.com/lucianosiqueira65
Leia:
Independência da imprensa aonde? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/minha-opiniao_10.html
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