04 novembro 2007

Crônica do domingo

A caderneta
Inah Lins

A idéia que me veio logo ao acordar, quem sabe, retalhos de sonho escondidos no inconsciente pela censura. Lembrança carregada de saudades. Nítida até mesmo nos detalhes, lá estava o principal, este não fora censurado.

A Caderneta da Venda, claro que tem que ser maiúscula, onde a minha avó comprava tudo que precisava para alimentar filhos, netos que por lá se encontrassem e os agregados permanentes ou passageiros.

À época não havia grandes lojas ou armazéns, muito menos os insuportáveis shoppings. Até mesmo no nome, a nossa língua é tão mais bonita.

Mas votarei depressa à idéia que restou do sonho, antes que fuja tal pássaro aproveitando a gaiola esquecida aberta, o que já me aconteceu inúmeras vezes, até mesmo com ave saindo da cabeça, talvez por demais exposta. Isso me faz lembrar um quadro de Reynaldo Fonseca, grande pintor pernambucano, um óleo, cabeça desenhada com força e cores inesquecíveis, feições andróginas, e um pássaro de rara beleza saindo do meio daquele crânio.

Um parágrafo inteiro com intenção de não fugir do principal e não consigo, vou até o quadro que retenho na memória com todos os detalhes. Não me preocupo, escrevo para mim e o que me trazem os neurônios, além do mais, tem muito a ver, a fuga do pássaro e da idéia.

Voltarei à Caderneta da Venda de Seu João, no Pátio de Santa Cruz, e à figura da minha querida avó, doce como o mel de engenho que me servia com farinha, de paladar inesquecível até hoje.
Traço marcante de sua personalidade: tratava muito bem aqueles mais necessitados, ajudando-os, até mesmo quando não dispunha de dinheiro. Sempre arrumava alguma coisa para atendê-los.

Para mim, apesar de pequena, foi então que aprendi as primeiras lições do verdadeiro socialismo. Tratava os menos favorecidos com mais amor do que os mais abastados.

Outro desvio da estrada. É assim o caminhar da minha vida, nada acontece em vão, existe o sentido mais nobre, o de fazer justiça, lição que aprendi com Dona Rosa, assim conhecida no bairro da Boa Vista. Saio da estrada, encontro atalhos, entre eles o que me lembra meu irmão Roberto, já encantado.

Certa vez a minha mãe insistia para que agisse de uma forma não adotada por ele, e na delicada maneira de dizer as coisas, sabendo endurecer com ternura, o que me faz lembrar outra grande figura, respondeu com voz suave - mãe, que fazer? Eu nasci assim. E aquele tom ingênuo e puro jamais saiu dos meus ouvidos.

É isso aí. O que fazer, nasci assim, não é Roberto? Não pode me responder, mas se o fizesse seria apenas com um sorriso.

Juro que tentarei ser objetiva, descrever a Caderneta.

Comprava fiado, mas nunca deixou de pagar no dia em que o meu avô recebia o salário.
Difícil lembrança, talvez por arrancar de lá de dentro a semelhança com a minha agenda que tantas vezes tentei passar a limpo e ainda não consegui. Dr. Freud deve explicar. Capa dura, tipo cadernos da época, rajada de marrom e branco, tal o desenho dos mosaicos do alpendre da casa da minha avó.

Afaste-se idéia, senão será impossível chegar ao centro do texto que pretendia escrever de manhã cedo, logo ao acordar.

A venda ficava ao lado da padaria de Santa Cruz, ainda hoje com pães e bolachas deliciosos, por onde eu covardemente evito passar.

Simples lembrança, quem sabe, retalho de sonho censurado, entranhada de outros tantos pedaços de vida. Sendo espontânea, intuitiva, ou seja, lá o que for, continuarei, é o meu desejo, fio de meada, surgida não por acaso, achei a ponta, segurei-a e continuarei até as palavras não mais o desejarem e a quem obedecerei.

Atenção ao prumo, qual nada, para que me preocupar se a vontade e as palavras, fluem tal as águas do rio à minha frente, repito consciente, por não encontrar sinônimo que as mereça substituir.

Algo sussurra dizendo que devo parar, logo agora que as lembranças fluem mais rápidas, bem mais que as idéias.

Não reli, poderei estar sendo precipitada, mas atenderei ao instinto, ao sussurro, palavra esta que gosto de ouvir, escrever e obedecer.

Se reler o que escrevi tenho certeza de que mudarei tudo, é um dos meus defeitos, não sei repetir o espontâneo, ou talvez rasgarei.

Jamais poderei rasgar a caderneta de minha querida avó que tanto me ensinou .

- Sá Candinha, vai buscar a manteiga e o pão na venda para a ceia e não esqueça de levar a
caderneta.

Não consigo deixar de ouvir a frase e o tom doce de Dona Rosa.

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