Marco Albertim, no Vermelho
O torno girando, veloz,
zuniu como das outras vezes. O óleo derramado na navalha de aço, e no aço cru
preso ao cabeçote, baixou a temperatura dos dois, inda que a custo de um
fumegante vapor. A fumaça inalada pelo torneiro, pelo
ferramenteiro e pelo ajudante, poupou o chefe da manutenção, por
conta da distância de seu birô junto à porta de acesso. A porta sempre aberta
dava conta de uma vintena de outras seções, onde funileiros, soldadores,
duteiros, pintores e ajudantes, sem o perceber, orquestravam uma sinfonia de
ferros, aços e folhas de flandres cortados ou emendados à força de soldas.
Vizinha ao almoxarifado, a oficina de
manutenção, por ser o laboratório onde o aço bruto ou o ferro, mesmo
sob o efeito da oxidação, convertiam-se em ferramentas próprias ao
molde ou ao corte de outras, depois de usinadas, era o cérebro da produção; daí
o prestígio de que gozava entre os operários; mesmo o ajudante, único com
ofício ainda em formação, era visto com inconfessa inveja por ajudantes de
outras seções.
César, operando o torno feito o piloto de um
veículo de raro manuseio, pouco se importou com a densidade tóxica da fumaça.
Com um olho na usinagem do aço e outro no ferramenteiro, no ajudante e no chefe
da manutenção, tinha na boca e no nariz uma máscara de proteção. Inda que o
corpo coberto com o grosso macacão sujo de óleo da cintura para baixo, os
braços estavam sem proteção; nas mãos, nenhuma luva. Súbito, sua voz roufenha,
de curto alcance, soltou um grito que rompeu a rotina já monótona aos sentidos
de cada um dos operários.
É forçoso dizer que o torneiro era dos raros
operários a fazer uso dos vales quinzenais concedidos pela fábrica.
O dinheiro vinha num envelope azul, junto a um recibo onde punha sua assinatura
com letras tão arrevesadas, em nada parecidas com o contorno sem diferenças
gerado nos cortes do aço cru na navalha no carro superior do torno. De todos os
operários, era o único a conter o suor nos poros negros de sua pele. O macacão,
da cintura para cima, inda que desbotado pelo uso contínuo, não exibia traços
ou manchas de óleo. César movia-se conforme a mobilidade do barramento do
torno, na altura e abaixo de sua cintura; o barramento liso tinha só três
metros de comprimento horizontal. Ali mesmo, sem se d espregar do barramento,
acostumara-se a receber do funcionário do escritório, o envelope com o dinheiro
urdido dois, três dias antes.
Oitenta operários foram surpreendidos com o grito
do torneiro mecânico, correram para a sala de chão de cimento estropiado da
manutenção. Viram, atônitos, o rosto de César amarelar-se feito as paredes de
folhas de ferro pintadas, nos quatro lados da sala. A sua mão direita,
raramente em contato físico com um dos três barramentos, prendera-se ali, à
força da corrente de eletricidade vazada para o torno. A chave de força do
torno ficava vizinha aos três barramentos. César demorou a recuperar a cor natural
de seu rosto. O impacto do choque, no entanto, foi interrompido pelo ajudante
da sala, que correra em sua direção e desligara a chave de funcionamento do
torno.
O grito, a correria dos outros operários no galpão
da produção também com o piso estropiado, deram um susto nos funcionários do
escritório, no pavimento de cima. O dono da fábrica, cuja sala tinha uma parede
de vidro transparente, dando visão para os operários no trabalho, ergueu-se de
sua poltrona. Ordenou que o chefe de setor de pessoal descesse para apurar o
que ocorrera. Cumprida a ordem, o chefe de setor de pessoal deu conta ao dono
da fábrica, do acidente.
- Foi com o rapaz que pede um vale toda quinzena?
- Sim - respondeu o auxiliar.
- O vale já está pronto? Providenciem logo.
- Já está no envelope.
O auxiliar olhou para o boy do escritório,
ordenando que levasse uma garrafa de água gelada para o torneiro mecânico. Em
seguida, lembrando que o envelope com o dinheiro já estava em seu bolso,
emendou:
- Não! Eu mesmo levo.
César bebeu a água e recebeu o envelope com o
dinheiro, sob os olhares de espreita dos operários.
Quando o chefe de pessoal voltou para o escritório,
informou ao dono da fábrica que o chefe da manutenção pedira autorização para
liberar o torneiro do trabalho, pelo menos naquele dia.
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