Ugo Giorgetti, em O Estado de São Paulo
Só
que ninguém reclamava das inconfortáveis instalações do glorioso Arruda, do
Recife. Ao contrário, havia alegria delirante, que atingiu até os narradores do
jogo, atônitos com a impressionante concentração de massa diante de seus olhos.
Um dos narradores chegou mesmo a mencionar, com razão, que parecia um jogo do
passado, dentro daquele estádio de linhas arquitetônicas antiquadas, relíquia
de um tempo em que estádios eram feitos para abrigar qualquer torcedor e não
certos torcedores.
Abrigar
talvez seja um termo não adequado. Estádio não era feito para abrigar, mas para
caber. Quem ia ao estádio sabia que poderia ter que se sentar no concreto com o
risco de ficar um pouco espremido, debaixo de sol, chuva ou frio. Mas ninguém
se importava. Como não se importavam domingo os sessenta mil alucinados
torcedores do Santa Cruz. Esse jogo e essa torcida vieram provar muita coisa.
O
verdadeiro torcedor de futebol, que fez a grandeza do futebol brasileiro, não
desapareceu. Lá estavam eles, alegres, fanáticos, jovens e velhos, homens e
mulheres, elas inclusive, as belas mulheres do Recife, todos com os olhos no
campo e provavelmente sentados no cimento duro. Ninguém se preocupava com outra
coisa senão com o desempenho do seu time. Sua alegria vinha do gramado, não de
outro lugar. Foi comovente e consolador ver as jovens gerações se comportando
como as velhas, no mesmo desprendimento, no mesmo desprezo por condições
especiais de acomodação.
Estádio
foi feito mesmo pra sofrer, se angustiar, e entrar em êxtase, talvez tudo
junto. A torcida do Santa Cruz se colocou ao contrário de tudo que existe por
aí em termos de novas arenas. Fala-se que essas arenas darão mais conforto,
comodidade, espaço, aos torcedores. Quem precisa de tudo isso?
Não
os torcedores do Santa Cruz, como constatei domingo. A verdade é que essas
arenas estão sendo feitas para outros torcedores que pagarão "o preço de
mercado" pelos ingressos. O que é esse preço? O maior possível,
evidentemente.
Numa
metrópole brasileira sempre existirão quarenta, quarenta e cinco mil pessoas,
por exemplo, que pagarão sem pestanejar os preços de mercado. Mas serão
torcedores diferentes. Velhotes gordinhos, sisudos, que precisam de espaço para
seus corpinhos, que precisam de estacionamento para seus 4X4, que precisam se
abrigar do frio e do sereno. Que vão reproduzir nos estádios, acomodados em
seus belos "camarotes", a reclusão que vivem atrás das grades
pontiagudas de seus belos edifícios, cercados de guardas por todos os lados.
Futebol
é coisa de jovens. De velhos também, mas como os velhos que foram domingo no
Arruda. Que choravam copiosamente com a vitória e o regresso triunfal do Santa.
Você imaginaria um executivo, sem um pingo de suor no rosto, sentado num lugar
especial, uisquinho na mão, chorando? O espetáculo no Arruda me mostrou que
existe um Brasil que continua o mesmo, felizmente. Não vai mais aparecer muito
na TV é certo, mas, quando menos se espera, lá está ele.
Também
é muito possível que já se pense em transformar o Arruda numa arena igualzinha
às outras. Talvez, mas não me interessa. Me interessa o que vi domingo passado.
Por isso que agradeço ao Santa Cruz e á sua torcida o espetáculo que deram. E
aproveito para declarar que conquistaram um fanático torcedor, infelizmente de
longe, aqui de São Paulo, mas sonhando com o Arruda. Viva o Santa!
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