13 abril 2014

A vida do jeito que é

Picasso
Cambeba e a viúva
Marco Albertim, no Vermelho

O Baldo do Rio não é mais um baldo. O rio continua comprido, estreito. As águas que despeja na largura do leito, são tão ralas quanto escassas; têm o mesmo acento gelatinoso, e o cheiro azedado da calda que a usina despeja no período da moagem da cana. Com o fim das enchentes naturais, vindas da foz do rio, no meio do leito fez-se nua uma crosta de terra cinzenta; logo uma vegetação sem cor definida cresceu.


Nas paredes de pedras, de um lado e de outro, a mesma vegetação cobriu a simetria da mais que centenária construção; resultou dali o traço melancólico de que o outrora próspero porto de Goiana, move-se dos dois lados, espremendo o espaço quase sumido das águas.

Foi ali que o professor Cambeba resolveu descansar; não na beira do canal, vizinho à ponte de acesso ao canavial da usina, mas num banco de cimento estropiado, com os ferros enferrujados à mostra. Conseguira escrever na lápide do feitor Múcio Rabelo – Aqui jaz um fascista. – Inda que tenha distinguido, entre um tronco e outro das acácias, e com a ajuda de um insidioso raio dando sinais de chuva, o rosto mortiço do feitor. A tinta usada, spray cor preta, dando conta das intenções subversivas do autor da peça.

Arnaldo Cambeba sentou-se no banco onde, nos meses que se seguiram ao 1º de abril de 1964, vira corpos de camponeses boiando feito troncos de cortiça sem a casca; as barrigas inchadas, os rostos careteiros, com ritos de desafio à simetria móvel das nuvens desdenhosas.

Atrás do banco, olhando para a praça com palmeiras imperiais e um capim ralo, crescido, desigual, o casario conjugado dava conta de armazéns onde o açúcar das duas usinas era estocado em sacos de tecido de algodão grosso. O feitor Múcio Rabelo também tinha o seu, sem se desfazer das botas de cano alto, com as pernas da calça no interior das botas.

- Sei o que você está pensando...

Ele olhou para trás, viu a silhueta robusta de Eulália Rabelo ainda com vestido de luto, luto aliviado, insinuando uma perda recente na família.

- Venha tomar um café comigo – convidou ela.

Ela sentou-se na poltrona de recosto móvel, em frente ao birô onde seu marido monitorava o livro de entradas e saídas dos sacos de açúcar.

- Você não foi para a missa de sétimo dia do falecido meu marido.

- Você me deixou para casar com ele. O que o povo iria dizer de mim?

- Iriam tratá-lo com respeito... um homem sem mágoas.

Arnaldo Cambeba tivera com o feitor um convívio marcado por diferenças, desde o tempo em que, juntos, estudaram no seminário.

- Por que você preferiu casar com ele?

- Não tive outra escolha. O meu pai também era feitor de engenho, de dois engenhos. Exigiu que eu me casasse com Múcio. Disse para mim assim que saí do colégio das freiras.

Ele olhou para as paredes brancas, mofadas pelo cheiro acre do açúcar nos sacos. Viu na parede dos fundos, atrás de Eulália, o cabide onde o feitor depunha o chapéu de feltro verde, queimado feito o massapé seco na entressafra das canas; o rebenque de couro grosso, que o feitor não era homem de esconder os desígnios de violência.

- Venha comigo – ele se levantou e segurou numa das mãos da viúva. – Ordene a seu motorista que nos leve ao cemitério.

Com o sol ardendo na pele, os dois se puseram em frente à lápide do feitor. Cambeba não deixou de olhar para os galhos das acácias; com o olhar soberbo e a recuperação da vaidade de ter descoberto no materialismo a explicação para a sujeição dos homens à igreja e às usinas.

- Eu escrevi isso! – disse ele apontando para o mármore branco.

- Desconfiei que você faria isso. Vamos para casa. Você vai dormir. Mais tarde venha jantar comigo.

- Na mesma mesa do feitor?

- Na mesma cadeira onde o feitor presidiu os jantares que oferecia aos amigos.

Arnaldo Cambeba vestiu o paletó de linho, olhando-se no espelho, suspeitando estar parecido com o feitor em noite de solenidade. Entrou na casa de Eulália Rabelo, seguido pelo empregado que o feitor trouxera das terras de seu engenho. A mesa estava posta. Eulália, sentada na cabeceira, e na outra o padre Hercílio.

- Sente-se aqui, Arnaldo.

Ele sentou-se sem tirar o paletó, para não parecer um usurpador.

- Arnaldo. – ela fitou Cambeba bem no fundo dos olhos – O padre Hercílio vai oficiar o nosso casamento.

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