Quem
tem medo de artista?
Wagner Moura, ator
Artistas são seres políticos. Pergunte aos gregos, a Shakespeare, a
Brecht, a Ibsen, a Shaw e companhia - todos lhe dirão para não estranhar a
participação de artistas na política.
A natureza da arte é política pura. Numa democracia saudável, artistas
são parte fundamental de qualquer debate. No Brasil de Michel Temer, são
considerados vagabundos, vendidos, hipócritas, desprezíveis ladrões da Lei
Rouanet.
Diante de tamanha estupidez, fico pensando: por que esses caras têm
tanto medo de artistas, a ponto de ainda precisarem desqualificá-los dessa
maneira?
Faz um tempo, dei muita risada ao ver uma dessas pessoas, que se referia
com agressividade a um texto meu, dizer que todo bom ator é sempre burro, pois
sendo muito consciente de si próprio ele não conseguiria "entrar no
personagem".
Talvez essa extraordinária tese se aplicasse bem a Ronald Reagan,
rematado canastrão e deus maior da direita "let's make it great
again". De minha parte, digo que algumas das pessoas mais brilhantes que
conheci são artistas.
Esse medo manifestado pelo status quo já fez com que, ao longo da
história, artistas fossem censurados, torturados e assassinados. Os gulags de
Stálin estavam cheios de artistas; o macarthismo em Hollywood também destruiu a
vida de muitos outros. A galera incomoda.
Uma apresentadora de TV fez recentemente sua própria lista de atores a
serem proscritos. Usou uma frase atribuída a Kevin Spacey, possivelmente dita
no contexto de seu papel de presidente dos EUA na série "House of
Cards".
A frase era a seguinte: "a opinião de um artista não vale merda
nenhuma". Certo. Vale a opinião de quem mesmo? Invariavelmente essas
pessoas utilizam o chamado argumento "ad hominem" para desqualificar
os que discordam de suas opiniões.
É a clássica falácia sofista: eu não consigo destruir o que você pensa,
portanto tento destruir você pessoalmente. Um estratagema ignóbil, mas muito
eficaz, de fácil impacto retórico. Mais triste ainda tem sido ver a
criminalização da cultura e de seus mecanismos de fomento, cruciais para o
desenvolvimento do país.
Aliás, todos os projetos sérios de Brasil partiram de uma perspectiva
histórico-cultural, como os de Darcy Ribeiro, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de
Holanda e Gilberto Freyre.
Ver o ministro da Cultura dando um ataque diante do discurso de Raduan
Nassar só faz pensar que há algo mesmo de podre no castelo do conde Drácula.
Mesmo acostumado a esse tipo de hostilidade, causou-me espanto saber que o
ataque, na semana passada, partiu de uma peça publicitária oficial da Republica
Federativa do Brasil.
Sempre estive em sintonia com a causa do MTST (Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto); fiz com eles um vídeo que tentava explicitar o absurdo
dessa proposta de reforma da Previdência.
O governo ficou incomodado e lançou outro vídeo, feito com dinheiro
público, no qual me chama de mentiroso e diz que eu fui "contratado"
-ou seja, que recebi dinheiro dos sem-teto brasileiros para dar minha opinião.
O vídeo é tão sem noção que acabou suspenso, assim como toda a campanha
publicitária do governo em defesa da reforma da Previdência, pela Justiça do
Rio Grande do Sul.
Um governo atacar com mentiras um artista, em propaganda oficial, é, até
onde sei, inédito na história, considerando inclusive o período da ditadura
militar.
Mas o melhor é o seguinte: o vídeo do presidente não conseguiu desmontar
nenhum dos pontos levantados pelo MTST.
O ex-senador José Aníbal (PSDB) escreveu artigo em que me chama de
fanfarrão e diz que a reforma só quer "combater privilégios". Devo
entender, então, que o senhor e demais políticos serão também atingidos pela
reforma e abrirão mão de seus muitos privilégios em prol desse combate? E o
fanfarrão ainda sou eu?
Se o governo enfrentasse a sonegação das empresas, as isenções
tributárias descabidas e não fosse vassalo dos credores da dívida pública,
poderíamos discutir melhor o que alardeiam como rombo da Previdência.
Mas eles não querem discutir nada, nem mesmo as mudanças demográficas,
um debate válido. O governo quer é votar logo a reforma, acalmar os credores,
passar a conta para o trabalhador e partir para a reforma trabalhista antes que
o povo se dê conta.
Tenho uma má notícia: no último dia 15, havia mais de um milhão de
pessoas nas ruas do país. Parece que não é só dos artistas que eles deverão ter
medo.
WAGNER
MOURA é ator. Protagonizou os filmes "Tropa de Elite" (2007) e
"Tropa de Elite 2" (2010). Foi indicado ao prêmio Globo de Ouro, no
ano passado, pela série "Narcos" (Netflix)
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