Desafios atuais do “conteúdo local”
Haroldo Lima, no Blog do Renato
Uma conjugação de fatores responde pela
situação adversa por que passa a atividade econômica no Brasil. Embora com
atraso, a crise do sistema capitalista internacional, iniciada em 2008, nos
atingiu. Houve a queda dos preços das commodities, desde 2014, em particular do
petróleo. Há os embaraços provocados pela crise política interna.
Foi também
significativa no aprofundamento dessa crise a Operação Lava Jato. Esta
Operação, no seu início, despertou esperanças no povo. Parecia uma cruzada
séria contra a corrupção. Mas, cedo mostrou um viés político acentuado e
o uso de métodos ilegais e perigosos, como a formação de uma espécie de Estado
de exceção dentro do Estado de direito, o desrespeito ao devido processo legal,
as delações arrancadas, o vazamento seletivo de informações, a seleção de
corruptos a serem combatidos e de outros a serem protegidos, a transformação da
atividade investigativa em um show pirotécnico escandaloso a serviço de
política conservadora, tudo em conluio com a grande mídia.
Mas, talvez mais
grave que tudo, foi que, ao invés de punir com rigor corruptos e corruptores
com culpas formadas, a Lava Jato e a grande mídia desencadearam um processo de
desmoralização e liquidação das maiores empresas de engenharia brasileira,
praticamente inviabilizando-as, ao tempo em que abria as grandes obras do país
às concorrentes estrangeiras, festejadas aqui sem nenhuma ressalva, mesmo
aquelas que tem problemas de corrupção em seus países de origem.
No setor de
petróleo e gás, outros fatores se apresentaram para compor o quadro de
amargura. A queda dos preços do petróleo, desde 2014, foi fundamental, mas
também os ataques feitos à Petrobras a partir da Lava Jato, que, ao invés de
desbaratar e prender uma quadrilha de bandoleiros que atuava na companhia,
preferiu,com estardalhaço chocante, lançar suspeita sobre toda a Petrobras,
como se a nossa grande estatal estivesse completamente contaminada pela
corrupção. A atividade da Petrobras se retraiu e com ela a de uma plêiade
de empresas do seu ciclo produtivo.
Finalmente, entra
em cena as controvérsias que influenciarão a política de conteúdo local,
a ser seguida a partir de agora pelas companhias petroleiras no Brasil.
Esta é uma
questão que demanda firmeza e flexibilidade, para que prejuízos maiores não
apareçam, seja por recuo na defesa da industria nacional, seja por exigências
que terminam mantendo uma reserva de mercado para empresas tecnologicamente
atrasadas.
Desde 1953,
quando a Petrobras foi criada, até 1977, quando foi extinta sua exclusividade
no exercício das atividades petrolíferas no Brasil, sua demanda norteou o
desenvolvimento da indústria para-petroleira (IPP) nacional. Esta situação, por
um lado, fomentou o surgimento e crescimento da IPP no Brasil mas, por outro
lado, limitou a atividade desse segmento aos conceitos tecnológicos de uma
única empresa e restringiu sua atividade a uma relação empresarial também
única. A IPP surgiu, mas não ganhou autonomia nem competitividade.
A partir do
chamado fim do monopólio da Petrobras, em 1995, e do surgimento, em 1997, da
Agência Nacional do Petróleo, ANP, começou a preocupação do Estado brasileiro
com a ampliação e diversificação da IPP, o que o levou a introduzir nos
contratos de concessão da ANP uma chamada “cláusula de conteúdo local”.
Assim é que,
desde a Primeira Rodada de Licitações de Blocos Exploratórios da ANP, em
1999, até agora, esta cláusula consta dos contratos de concessão que as
vencedoras dos certames assinam. Na Primeira Rodada, contudo, os percentuais de
conteúdo local oferecidos pelas empresas não eram obrigatórios, eram
declaratórios, computados somente para efeito de pontuação das ofertas das
diferentes empresas. Este modelo permaneceu até a Quarta Rodada, em 2002.
A Quinta e Sexta
Rodadas, realizadas em 2003 e 2004, já no governo Lula, viram mudanças
importantes serem introduzidas: os percentuais de conteúdo local ali apontados
passaram a ser obrigatórios e diferenciados, para bens e serviços, em blocos
terrestres, blocos em águas rasas e blocos em águas profundas.
Ajustamentos
ocorreram nas rodadas seguintes. Na Sétima, em 2005, incorporou-se ao Contrato
de Concessão uma Cartilha de Conteúdo Local, elaborada pelo Programa de
Mobilização da Indústria de Petróleo e Gás Natural, o Prominp, criado em 2003.
A cartilha uniformizava a forma de aferir a origem, nacional ou estrangeira,
dos produtos comprados.
Em novembro de
2007, a ANP deliberou pela criação de empresas que viessem a dar praticidade ao
controle da referida cláusula E surgiu o Sistema de Certificação de Conteúdo
Local, que estabelece a metodologia para a certificação e as regras para o
credenciamento junto à ANP, das certificadoras que surgissem.
A cartilha foi
incorporada à regulação da Agência (Resolução nº 36 da ANP), para ser usada
pelas empresas credenciadas pela ANP para emitir os certificados de conteúdo
local.
Após a descoberta
do pré-sal e a implantação do regime de partilha da produção foi criada a
Pré-Sal Petróleo SA, PPSA, empresa 100% estatal, que, em nome da União,
faz “a gestão dos contratos de partilha de produção” celebrados no
pré-sal, bem como age sobre as operadoras, para que cumpram “as exigências
contratuais referentes ao conteúdo local” (Lei 12.304/10).
Essa política,
com as mudanças referidas, trouxe resultados positivos à industria brasileira.
De acordo com o Programa de Mobilização da Indústria do Petróleo, o Prominp,
desde 2003, quando o órgão foi criado, a participação da indústria nacional nos
investimentos do setor saltou de 57% em 2003 para 75% no primeiro semestre de
2009, o que representou um valor adicional de 14,2 bilhões de dólares de bens e
serviços contratados no mercado nacional, e a geração de 640 mil postos de
trabalho no período. A indústria naval conheceu uma ascensão bastante
significativa, que não se sustentou, contudo.
O que é certo é
que o país não pode abrir mão da ampliação de sua indústria para-petroleira,
IPP, pelo que a política de conteúdo local, que envolve as concessionárias e
contratadas da ANP, deve ser aprimorada, ajustada às condições concretas mas,
de forma alguma, abandonada. É sob essa ótica que devem ser examinadas suas
controvérsias atuais.
A primeira vem do
fato de que as concessionárias preferem importar bens e/ou serviços, a
terem que arcar, segundo argumentam, com produtos locais sem a qualidade, sem o
preço e fora do tempo de fabricação requeridos. Essas concessionárias optam por
descumprir as exigências do conteúdo local, ainda que tenham que pagar as
multas, às vezes pesadas, da ANP.
A BG, por
exemplo, no primeiro semestre de 2015, foi multada em R$275 milhões, a maior
penalidade até então exarada pela ANP no capítulo de conteúdo
local. Entre 2013 e 2015, as multas totalizaram R$ 315 milhões. Em 2015
foram trinta multas. (ESP, 15/06/2015, fonte ANP)
A Petrobras,
sendo, de longe, a maior concessionária nos campos petrolíferos brasileiros, é,
também, quem mais recebe multas por descumprimento da cláusula de conteúdo
local. Sozinha, a estatal respondeu por 42% do total das multas aplicadas em
2014. (Id)
No enfrentamento
desse problema, há que se ter uma posição de princípio, a de que a política de
conteúdo local é peça importante de uma política industrial brasileira
progressista e por isso, cabe aprimorá-la, não revogá-la.
Isto
estabelecido, não se pode onerar as petroleiras obrigando-as a adquirir
produtos de qualidade duvidosa, a preços e prazos de entrega
desajustados. As “cláusulas de conteúdo local” dos contratos da ANP
sempre afirmaram a preferência por fornecedores brasileiros cujas ofertas
apresentassem preço, prazo de entrega e qualidade equivalentes aos
estrangeiros. A defesa do produtor nacional deve ser feita, mas não pode se
transformar em prática que favoreça gestões obsoletas e empresas de tecnologia
atrasada. Isto seria um erro.
A ANP anuncia
para os próximos meses uma Rodadinha, a 14ª Rodada e duas rodadas no pré-sal. É
de todo conveniente aprimorar a cláusula do conteúdo local, mantendo-a
irreversível,
Diferentes
setores têm levantado, a propósito, a inconveniência de se manter percentuais
obrigatórios para quase 90 itens, como é hoje. Não seria o caso de substituir
esses itens, ou por número bem menor de bens, em que já temos capacidade mínima
de competir ou possibilidades de fazê-lo, ou ainda de realçar não bens, mas
segmentos industriais, como máquinas, engenharia de projetos, infraestrutura e
outros?
Discute-se também
a opção por um índice global de conteúdo local, que incluísse bens e serviços,
o que pode levar à distorção de se atingir um determinado índice “global” sem
se incorporar nada de máquinas e equipamentos.
Concessionários
tem criticado o modelo em vigor chamando-o de “indústria de multas”. Embora
haja evidente exagero nessa formulação, a questão pode nos remeter a outro
desafio, o de adotar uma política de conteúdo local que não abrigue a idéia de
multa, mas sim a de incentivo. Alguns países procedem assim, e têm conseguido
vitórias, como a China. A empresa que atingir metas determinadas de
conteúdo local é premiada comdesonerações, subsídios e regimes aduaneiros
beneficiosos.
Por último, está
em curso um problema importante. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis (ANP) abriu uma Consulta Pública para discutir uma solicitação
da Petrobras para que a Agência libere todas as exigência de conteúdo local
para uma plataforma do tipo FPSO, no campo de Libra, no pré-sal. Esse pedido
foi apresentado pela Petrobras em 30 de agosto de 2016 e foi marcada uma
Audiência Pública sobre o assunto para 18 de abril de 2017.
Na argumentação
da Petrobras aparece a afirmação de que “a plataforma só será viável economicamente
se o consórcio for liberado das obrigações” de conteúdo local. É o conhecido
pedido de waiver, ou da
desistência em cobrar o que é de direito. E a diretora de Exploração e
Produção, Solange Guedes, da antiga equipe da Petrobras, afirmou que “o consórcio
da promissora área de Libra, no pré-sal da Bacia de Santos, precisa ser
liberado completamente da obrigação de conteúdo local”. (FSP 11/01/2017) E que,
“no limite, semwaiver,
não terá projeto” de Libra! A Petrobras, além de Libra, já solicitou também pedido
de waiver para o FPSO de Sépia, na cessão
onerosa da Bacia de Santos.
Agiu com
prudência a ANP ao não deliberar de motu próprio sobre tema tão delicado, e
aberto um processo de Consulta seguida de Audiência Pública. O waiver para este caso, como para outros
pedidos pela Petrobras,abrirá um precedente perigoso para a política de
conteúdo local e para o respeito aos contratos firmados.
Por outro lado,
correr-se o risco de truncar o projeto de Libra é preço que não se deve pagar.
Em casos como tais, espera-se que a Consulta da ANP ilumine alguma solução,
como a prorrogação do prazo para cumprimento da cláusula, mas mantendo-a,
inclusive porque revogá-la, cria um precedente perigoso para a indústria
nacional e para a regulação da ANP, que pode ser questionada juridicamente.
Haroldo
Lima – engenheiro, foi diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo,
Biocombustíveis e Gas Natural e é membro da Comissão Política Nacional do
Comitê Central do Partido Comunista do Brasil
Leia mais sobre temas da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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