Manual
do Exército orientou perseguição a comunistas durante a ditadura
Publicação acusou dissidentes de infiltração em
associações, propaganda ideológica e lavagem cerebral
Alline Magalhães, Folha de S. Paulo
Um
documento encontrado por um pesquisador na cidade de Santos (SP) evidencia que
o Estado-Maior do Exército distribuiu material com orientações para que
autoridades militares perseguissem pessoas consideradas comunistas durante a
ditadura militar (1964-1985).
Trata-se
do “Manual de Campanha C 100-20 - Guerra Revolucionária”, um livro de 266
páginas que indica ter sido impresso em 1969 pelo Estabelecimento General
Gustavo Cordeiro de Farias (EGGCF), a gráfica do Exército.
Segundo quatro especialistas no período de ditadura militar consultados
pela reportagem, trata-se de uma publicação rara.
De circulação interna e tiragem de 5.000 exemplares, o
manual registra ter sido aprovado e colocado em prática pelo então
general do Exército e chefe do Estado-Maior do Exército, Adalberto Pereira dos
Santos (1905-1984).
Vice-presidente no governo de Ernesto Geisel (1907-1996), Santos foi
membro do Conselho de Segurança Nacional, que, em 13 de dezembro de 1968,
aprovou o Ato Institucional número 5.
O decreto permitiu o fechamento do Congresso Nacional, cassação de
mandatos políticos e suspensão do direito de habeas corpus pelo governo de
Costa e Silva (1899-1969).
O manual do Exército contextualiza a Guerra Fria como sendo o período em
que a humanidade se defrontou com duas grandes correntes ideológicas, o
comunismo e a democracia.
“Às Forças Armadas, parte integrante da nação e, como ela, democráticas
por convicção, cabe indiscutivelmente papel essencial nessa vigilância”, diz um
dos trechos do manual, que argumenta ter havido um contragolpe para evitar uma
revolução comunista em março de 1964.
Embora também discuta a questão das guerrilhas, o foco da publicação do
Exército é a “arma psicológica” que seria utilizada por subversivos por meio de
propagandas, livros e encontros em associações civis, estudantis, sindicais e
até mesmo no âmbito do Ministério da Educação —que estaria sofrendo uma
sistemática doutrinação “marxista-leninista”.
Em certos pontos, o documento apresenta uma perspectiva dos dissidentes
que beira a paranoia.
“Pela lavagem cerebral, destrói-se a personalidade dos indivíduos”, diz
o manual.
Em outros, descreve os aspectos brutais da repressão. Um dos capítulos,
por exemplo, narra as “ações destrutivas” dos supostos agentes da revolução
comunista com o fim de desmoralizar o governo e atingir a ordem social.
Algumas dessas ações seriam as greves de operários, as passeatas e os
comícios considerados ilegais pelo regime militar.
Ao descrever o comportamento dos rebeldes, o manual menciona que eles
desafiam as autoridades para provocar o “derramamento de sangue” e criar os
“mártires da revolução”.
“A massa é levada a considerar a ‘missão sagrada de não trair a fé dos
mártires mortos’. E o sangue derramado pode transformar o mais banal dos
acontecimentos em um fato de grande repercussão, por sua exploração emocional”,
diz o texto.
No entanto, o conceito de “guerra revolucionária” nele abordado já foi
encontrado em outras publicações militares, como no “Mensário de Cultura
Militar” e no “Boletim de Cultura Militar”.
Para João Roberto Martins, professor de ciências políticas da UFSCar
(Universidade Federal de São Carlos), a publicação tem importância histórica.
“A leitura desse documento parece comprovar que a repressão e a tortura
tinham um sólido fundamento ideológico”, diz Martins.
O professor explica que a doutrina da “guerra revolucionária”, definida
como guerra interna com viés ideológico, fora importada pelos militares
latino-americanos do Exército francês, que a empregava junto a práticas
violentas nos conflitos na Indochina (Sudeste Asiático) e na Argélia.
Eduardo Heleno de Santos, professor do Instituto de Estudos
Estratégicos da UFF (Universidade Federal Fluminense), que tem convênio com
órgãos militares, também avalia a influência da doutrina no aparato
repressivo.
“Um dos aspectos mais importantes é que ela assume a ideia de um inimigo
interno”, diz.
O pesquisador aponta que o setor militar, que sempre agregou correntes
ideológicas distintas, com
destaque para o pensamento conservador, hoje segue
rumo à institucionalização.
“O mundo deles está muito mais próximo das missões de paz [da ONU], e a
valorização deles também”.
O documento menciona, ainda, outras duas publicações, supostamente, com
estudos complementares: “Manual C-33-5 Operações Psicológicas” e “Manual de
Campanha C-31-16 Operações Contra Guerrilhas”.
A reportagem enviou a publicação na íntegra ao Exército Brasileiro e fez
questionamentos sobre o seu conteúdo. A instituição respondeu com a seguinte
nota:
“O Centro de Comunicação Social do Exército informa que deve prevalecer
neste momento um espírito de conciliação entre todos, civis e militares, tendo
como ideal a reconstrução de nossa pátria. Com este espírito é que a
instituição continuará cumprindo suas missões constitucionais, contribuindo
para o desenvolvimento do País”, declarou o Exército.
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