Atrás do trio elétrico
Cícero Belmar
Isso
aqui iria pegar fogo não fosse a pandemia estar decretando o que abre e fecha
nas cidades. Nesta semana pré-carnavalesca, nos anos anteriores, as multidões
já subiriam e desceriam ladeiras em Olinda e Salvador; o boneco gigante do Galo
da Madrugada paralisaria o centro do Recife; blocos e escolas de samba
invadiriam São Paulo e Rio.
2021
inscreve-se na história contemporânea como o ano sem Carnaval. Goste-se ou não,
a suspensão foi o melhor que poderia nos ocorrer. A piora nos casos de
coronavírus, no meu entendimento, foi consequência, em parte, das aglomerações
na campanha eleitoral do ano passado. De lá para cá, o bicho pegou. Neste
momento em que novas cepas do Sars Cov-2 se espalham, é preciso trancar a população
em casa de novo.
Em condições
normais, porém, não faltaria tema para o folião fazer deboche nos blocos.
Sabe-se que o povo encontra lugar de expressão nas ruas, no Carnaval, fazendo
caricaturas e ridicularizando com os corruptos. Nunca na história deste País
tivemos tantos e de tantas espécies.
Carnaval tem
uma ambiguidade curiosa. Durante a festa, o povo ri das roubalheiras e
trairagem de certos políticos, mas as pessoas que fazem e acham graça, tiram as
máscaras, e têm potencial de ir às ruas para se manifestar quando a festa
acaba. A energia da animação que impulsiona os blocos é a mesma da rejeição que
movimenta protestos.
Talvez tenha
sido por isso, por esta capacidade de rir de si mesmo que, num passado já
remoto, refinados leitores de Platão, Aristóteles, Jean-Jacques Rousseau e Karl
Marx achavam que o Carnaval era uma prática de alienados políticos. Ou coisa de
despreocupados com relação aos problemas sociais que flagelam o País. Juro.
Tese
reforçada pelo fato de que, realmente, o Carnaval é um período adequado para as
pausas; para as pessoas se desligarem e cair na folia. Isso não quer dizer que
percamos a percepção dos acontecimentos, nos quais estamos inseridos. Certo é
que, quando fevereiro chega, o povão que já tem pouca opção de lazer, se joga
na esbórnia. Quem não?
Havia quem
torcesse o nariz para a nossa maior festa popular. E a lógica era a seguinte: o
povo não poderia ser, ao mesmo tempo, consciente, desenvolvido, e gostar de
folia.
Aqui cabe uma
fofoca de academias: dizem que quando o baiano Jorge Amado escreveu O País do
Carnaval, seu romance de estreia, não gostava dos folguedos. Na narrativa, a
personagem Paulo Rigger, um intelectual que se formou nos bancos de
universidades europeias, critica a qualidade festeira do brasileiro. E bate valendo
no Carnaval.
Passados os
anos, agora já maduro, o meu Amado Jorge mudou de entendimento e compreendeu
que a festa era a maior expressão cultural do povo. Para se redimir, escreveu o
monumental Dona Flor e Seus Dois Maridos. Ganhou a literatura brasileira.
Voltemos ao
que deixei no começo, o cancelamento oficial foi medida acertada dos gestores.
Fiquemos, pois, em casa, para irmos atrás do trio elétrico no ano que vem. Já
sabe, né? Lembrem-se da personagem Vadinho, marido de Dona Flor, que tombou na
fervura de um bloco. As razões de saúde foram outras; a situação, idem. Mas o
fato inquestionável é que aquele foi o seu último carnaval. Fica a dica.
*Cícero Belmar é
escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças
de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana
de Letras.
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