Livro
de 1º d.C. prova que gregos sabiam fazer novelões deliciosos
Há
algo muito próximo da novela televisiva na lógica narrativa de 'Quéreas e
Calírroe'
Reinaldo José Lopes, Folha de S. Paulo
Quem pensa no legado literário da Grécia Antiga quase invariavelmente tem na cabeça os poemas épicos de Homero ou o teatro ateniense. Mas os gregos da Antiguidade também inventaram o romance de aventura, um gênero repleto de novelões deliciosos cujo maior expoente acaba de ganhar uma tradução brasileira.
Não se assuste
com o título impronunciável. “Quéreas e Calírroe”, livro provavelmente escrito
em meados do século 1º d.C. por um obscuro especialista em retórica chamado
Cáriton de Afrodísias, talvez seja uma das melhores introduções possíveis à
literatura helênica antiga, graças ao texto ágil e divertido.
Afrodísias,
que ficava no sudoeste da atual Turquia, deve seu nome à deusa da beleza e do
amor, Afrodite, e a influência da divindade se faz sentir o tempo todo nas
desventuras em série dos protagonistas da obra, um casal de jovens apaixonados.
Quéreas e sua
amada Calírroe são membros da elite da cidade-Estado de Siracusa, na Sicília,
por volta de 400 a.C. (séculos, portanto, antes da época em que o autor viveu;
trata-se de uma espécie de romance histórico). Num momento de ciúme
descontrolado —afinal, não há homem em Siracusa que não esteja atrás da
irresistível Calírroe—, Quéreas agride sua jovem mulher e aparentemente a mata.
Inconsolável, deposita seu corpo num mausoléu repleto de oferendas.
Mas é claro
que a moça, na verdade, ficou apenas desacordada, e uma sucessão de peripécias,
envolvendo piratas, traficantes de escravos, eunucos e até imperadores, leva os
dois a atravessarem o Mediterrâneo e a Mesopotâmia tentando se reencontrar.
Há algo muito
próximo da novela televisiva —e
até de sua variante mexicana— na lógica narrativa do livro. Coincidências
improváveis e discursos grandiosos estão por toda parte, bem como abundantes
lágrimas vertidas pelo casal azarado.
Por outro
lado, o texto alude o tempo todo aos clássicos da literatura grega, em especial
Homero (detalhes devidamente ressaltados pela cuidadosa tradução de Adriane da
Silva Duarte, professora de língua e literatura gregas da USP). E a ambientação
histórica, que engloba os desastres da chamada Guerra do Peloponeso (entre
as cidades-Estado de Atenas e Esparta, na qual Siracusa também se viu
envolvida) e o poderio do Império Persa no Oriente Médio, vale como um convite
para entender melhor a história e os costumes do período clássico helênico.
O paradoxo
aqui, claro, é que a narrativa foi composta num momento em que as cidades
gregas tinham perdido havia muito sua independência para o Império Romano (e,
antes disso, para Alexandre, o Grande e seus sucessores). Portanto, o
romantismo remoto do período retratado vale tanto para os leitores originais do
livro quanto (numa medida maior, é claro) para o público moderno.
A influência
de “Quéreas e Calírroe” e outros romances gregos acabaria se estendendo até
sobre a nascente literatura cristã (majoritariamente também escrita em grego).
Um dos textos
apócrifos (não incluídos na Bíblia) mais populares dos primeiros séculos
cristãos, os “Atos de Paulo e Tecla”, reproduzem o mesmo clima aventuresco e
sensual —uma linda protagonista, amores não correspondidos, resgates por um
triz— a serviço de uma mensagem ascética e em defesa da castidade.
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