20 agosto 2006

Um conto de Marco Albertim

Nesta manhã de domingo, que tal a agradável leitura de um conto de Marco Albertim? Case-se com ela está entre os escolhidos no Concurso Osman Lins de Contos.

Case-se com ela

Conto de Marco Albertim

O sol já tinha se posto. A desconfiança de que o fim da tarde o deixaria deprimido, tornou-se certeza no começo da noite. Se estivesse em casa, teria uma refeição regular preparada pela mãe; sopa de legumes passados no liquidificador. Trouxe para a memória o cheiro da cenoura cozida, o cheiro da brenha ao lado da rodovia o ajudou. O mato sempre lhe remetia à infância, aos banhos no açude de água acobreada. Mas sentia fome e perdera a confiança no destino que o privara do conforto de se regalar na mesa de casa. A roupa suja, os pés nos chinelos gastos, os cabelos secos, lavados com sabão duro; não se acostumara à vida de andejo, embora se sentisse oculto. A polícia não o identificaria pelos trajos, o rosto terroso.

A luz rala de cada poste não alumiava a margem barrenta, de areia. Convinha entrar na primeira rua à frente. Caminhara por uma longa avenida, agora estava numa rodovia, certo de encontrar onde encostar o corpo. Nada lhe acontecera, não lhe aconteceria se entrasse em uma rua. Talvez encontrasse onde sentar, algum desocupado não pouparia dois minutos de prosa. Desceu por uma rua, pisando em seixos, cascalhos. Procurou se distrair no reparo das casas distantes uma da outra. Nunca reparara na sua vizinhança, agora tinha tempo para estudar moradias estranhas, o modo como cada morador se acomodava em terraços acanhados, de portas estreitas e janelas sempre fechadas ao lado. Na primeira, olhou para dentro, viu uma mulher sentada numa cadeira de balanço, sem se mexer, a cabeça apoiada em uma das mãos. Em que pensa ela? Terá filhos? Preparou sopa para o jantar da noite?

Sentou no primeiro bar que encontrou. Não havia sinal de imundície, embora as paredes estivessem borradas e o balcão, de tanto dar apoio a mãos e braços, estivesse desbastado. Lucas não pediu nada para beber, não tinha dinheiro. O dono não o estranhou porque o bar era abrigo de desocupados. Lucas olhou para a mortadela pendurada na prateleira, distraiu a fome no cheiro vindo do chouriço e da barra de queijo ao lado. A comida não estava coberta, uma mosca perdida tentava, vez em quando, pousar na carne. O dono a repelia com a mão. Ainda assim, aproveitando-se de sua distração numa conversa e noutra, o inseto conseguia pôr a boca na gordura aquosa da comida. Lucas sequer reparou no inseto, olhando com lascívia para a comida, intrigado com a indiferença do vendeiro ao cheiro de gordura.

Remanso das horas, goles demorados dos homens em volta, até a mosca espreitando a distração do homem, voava sem pressa, viciada no torpor da casa. Havia pesar nos olhos de Lucas. Um homem que bebericava de seu lado, olhou para sua sacola de pano, quase uma trouxa.

- Vê-se que o amigo está de passagem. Viajando?
- Sim. Vou esperar amanhecer para pegar condução no posto fiscal. Os caminhões de carga param. Eu peço carona.

Se não tivesse bebido, o homem não teria perguntado, não assuntaria nos propósitos de um estranho. A cachaça deixara-o com os sentimentos moles, e apiedou-se dos olhos tristes do estranho recém-chegado. Um resto de cuidado fez com que perguntasse ao vendeiro, quando voltou da latrina, se correria risco levando o estranho para dormir em sua casa. Foi advertido, aconselhado a calcular os riscos. A bebida também o convencera de que, se até então não sofrera reveses, fora graças à facilidade em presumir o perigo. Pediu mais bebida, olhou outra vez para Lucas e sentiu remorsos caso não se mostrasse hospedeiro.

- Qual é sua graça?
- Lucas.
- Passa a noite em minha casa, seu Lucas. Não tem quase nada na sua bagagem, mas ladrão não pede certidão de pobreza a ninguém.
- Eu agradeço.

O homem tenteou quando desceu os degraus da calçada. Pôs-se rápido em equilíbrio para não passar atestado de bêbado. Lucas notou, nada disse, não convinha dizer nada. A casa, a dois quarteirões dali, não tinha terraço. No sofá na sala não caberia um corpo deitado. O homem lembrou-se das advertências do vendeiro... e não levou Lucas para um quarto. Um resíduo de desvelo evitou que mostrasse a intimidade da casa.

- Vou buscar a rede.

Trouxe do corredor duas redes penduradas na parede. Instalou-as na sala. Deitou-se de modo a espreitar o sono do hóspede. Sua mulher não estava em casa, viajara. A filha, uma moça já com idade de casamento, observou Lucas, riu sem graça; não estava acostumada a se pôr na frente de homens. Ele tinha a sua idade. O homem quis saber se tinha fome, vira-o com os olhos de peixe morto na gordura da mortadela. A seu pedido, a filha trouxe pão com manteiga num prato, entregou a Lucas já sentado na rede. Não fosse isso, teria permanecido com os sentidos submissos à presença de um homem de sua idade. Deu o pão e achou-se superior a ele; mas logo se rendeu ao costume e abriu a guarda de mulher em desamparo. Lucas reparou nos olhos dela curiosidade e medo. A moça tinha medo e queria conhecer o mundo. Lucas era uma janela para o mundo. A da casa, na frente, estava sempre fechada, ao lado de uma porta estreita que se abria só de um lado; o outro estava preso em cima e em baixo por ferrolhos de ferro.

- Para onde viaja, se mal pergunto?
- Volto para Alagoas.
- Ainda tem muito chão pela frente.

Quis ponderar sobre a conveniência de Lucas ficar em Fortaleza, enfrentar as urgências da cidade, melhores que o calorão de todo o Cariri. Mas advertiu-se que o tinha como hóspede... e a ponderação poderia parecer um convite para ficar na casa. A filha sentou-se no sofá, queria ligar a televisão para fingir que se entretinha noutra coisa. O pai, no entanto, prevenira-a dos custos da conta de energia. Depois, ligar o televisor com o pai falando com o hóspede, seria desfeita ao assunto dos dois. Ficou sentada, olhando para o chão, arriscando observar o rosto de Lucas quando ele estava falando.
O homem sentiu sono, boquejou.

- Tá na hora de dormir, Nevinha.
- Sim, sinhô.

Ela levantou-se, quis saber se Lucas queria água, foi para o corredor e entrou no quarto, o último, junto à cozinha. O pai dormiu relaxado com a mansidão dos olhos de Lucas, pegou no sono e não ouviu quando a filha disse ao hóspede que se tivesse precisão da latrina, teria que abrir a porta dos fundos. A latrina ficava no quintal.

- Obrigado – ouviu do hóspede.

Lucas sentiu no pano da rede o cheiro acre de sujeira há muito impregnada no tecido. A luz turva da lâmpada impedira-o de distinguir umidade e bolor no pano grosso. O homem dormia de cueca. Lucas, por decência, deitou com toda a roupa.
Não demorou e caiu uma chuva grossa, os pingos chicoteavam no telhado. Não havia goteiras, o ruído era intenso por toda casa sem forro. Lucas sentiu alívio, não teria que gritar se estivesse falando com seu hospedeiro. Cobriu-se com o lençol que viera com a rede, tão azedo quanto o cheiro do chão, das paredes. Sentiu-se tão protegido quanto um cágado na carapaça. Podia dormir um sono solto, renunciar às incertezas do porvir. Ao amanhecer, comeria pão com café quente, fumaçando num bule de ágata. Desejou sonhar, urdir na memória o ambiente familiar de que fora desapossado. Levantou-se no meio da madrugada para mijar, percorreu todo o corredor palpando as paredes. No quarto da moça, a luz da lâmpada, baça, escorria um fio pobre de claridade sob a porta. Nevinha estava alinhavando a gola de seu melhor vestido. Não queria aparecer, de manhã, com a roupa defeituosa. Na volta, Lucas apurou o olfato e sentiu o cheiro de lavanda vindo do quarto. Está se asseando, pensou, se asseando para dormir.

Não sonhou, ele, dormiu sem saber que estava dormindo. Já o homem roncou com estrépito por toda a noite, não assustou ninguém, só alguma catita fazendo incursão no chão cheio de fungos. Nevinha foi a única a sonhar, sonhou de olhos abertos, maginando-se nos braços de um homem incerto.

Quando o sol despontou, infiltrou raios pelas fendas do telhado. O homem foi o primeiro a acordar, levantou-se, sentiu a estranha impressão de ver o desconhecido ainda deitado na sala de uso restrito da família. Pensou na mulher, na censura que teria de ouvir quando soubesse que dera pouso a um estranho de propósitos inconfessos. Antes de ir ao banheiro, demorou dois minutos reparando na rede, repetindo na memória a conversa que tivera com o vendeiro. A filha já estava de pé, com o vestido novo. Reparou-a de cima a baixo, advertindo-se de ser pai de moça feita, pronta para se tornar mulher.

- A bênção, meu pai.
- Deus te abençoe, minha filha.

Ela tinha posto para cozinhar sobre a chaleira com água fervendo, cuscuz no prato. O pano amarrado suava quente, soltando fumaça. O cheiro chegou à sala. Lucas sentiu pena por ter que sair de sua carapaça, mas animou-se com o cheiro da comida. Não se levantou de vez, ficou sentado, esperando que o autorizassem a ir ao banheiro e passar pela cozinha, conhecer a casa à luz do dia. Ouviu ruído de talheres, tão fresco na memória lívida do convívio familiar. O homem queria que ele fosse embora logo, sem experimentar do repasto preparado pela filha. Mas à noite lhe oferecera pão com manteiga preparado pela moça. O cheiro do cuscuz espalhando-se pela casa era um convite sem palavras, poderosamente mudo. A filha, tomada pelo mesmo instinto de dispor sobre a escassa despensa, pusera xícara, prato e talheres a mais sobre a mesa. Nada perguntara ao pai... em menos de vinte e quatro horas absorvera a gentileza paterna.

- Faça o favor, seu Lucas. O café está na mesa.

Ele levantou-se da rede, tirou os dois punhos dos ganchos na parede, dobrou-a com cuidado, deixando o lençol dentro. Não sabia que o costume da casa era guardar a rede, pendurada na parede do corredor, atada a um prego grosso. Com cuidado, deixou-a no sofá, num canto lateral, deixando espaço para quem quisesse sentar. O homem apreciou seu apuro, comparando-o ao desvelo da filha no trato com os objetos da casa.

Antes de sentar para comer, Lucas foi à latrina. O dono da casa tivera o cuidado de despejar água na bacia. Ainda assim, o bodum das fezes misturado ao ranço da bílis infectada pelo álcool, deixara o ar carregado de impurezas. Lucas mijou com o nariz tapado, respirou com a camisa cobrindo a boca. Convinha jogar água na latrina, o ruído seria ouvido e o julgariam um homem asseado. Lavou as mãos antes de sentar, cumpriu o rito como se estivesse nos costumes de sua família.

Comeram em silêncio. O hospedeiro perdera a incitação da bebida, não estava arrependido, recolhera-se ao acanhamento da casa, tão ignorada do julgamento alheio. A filha, já por si muda, cumpria-se no perfil do pai. Lucas queria falar, mostrar-se grato... e mostrou o sentimento nas porções poucas do cuscuz que punha na colher. Tinha fome e timidez. Os três eram acanhados. Quando pôs a última colherada na boca, Lucas arriscou:

- Ainda não sei o nome do senhor...!
- Godofredo.

Voltou a chover. O mês de julho trouxera vento e chuva, água para escorrer na rua de areia fina e seixos ambulantes. Lucas sentiu-se confinado na casa. Godofredo, olhando impotente para os fios grossos da chuva, calculou o tempo, quantas horas teria que ficar em casa até a noite, quando voltaria ao bar. Nevinha mirou-se no pai, inquirindo da chuva quanto tempo teria que sujeitar o sangue quente que corria em suas entranhas de mulher. Tinha vontade de imprecar contra a chuva, os pratos e talheres sujos; conteve com um engulho mudo os soluços... e guardou para quando estivesse no quarto as urdiduras de mulher virgem.

Lavou pratos e talheres, deixou a mesa forrada com a toalha branca, esperando a hora do almoço; do feijão elogiado pelo pai, insulso em sua boca balbuciando cismas. Depois, foi para o quarto, trancou-se. O pai julgou-a nos conformes de moça zelosa dos segredos de seu nicho. Ela ajoelhou-se em frente ao pequeno oratório, consumiu metade de uma vela numa reza imprecisa, danada. Até então suas preces tinham se perdido no desvão do quarto escuro. Não esperou o lume consumir toda a cera da vela; levantou-se deixando o pavio aceso, para serenar a reação do santo à revolta de seus instintos femininos. Foi para a sala. Chovia grosso, os pingos zurziam no telhado. Nevinha abriu a janela, escancarou-a para olhar o tempo de frente. Deixou o rosto se banhar na força dos pingos, para provar que seria capaz de mostrar-se inteira à intempérie de Deus e dos homens. Os cabelos se estiraram sobre os ombros, na nuca fina. Não usava sutiã, o tecido grosso do vestido cobria o feitio dos peitos rijos. A água empapou o pano, o tecido colou-se em seu corpo da cintura para cima, deixando ver a conformação dos peitos com os bicos duros. Não queria se purificar com as águas de junho, queria se conspurcar, ainda que às custas da lama escura escorrendo na frente da casa.

Godofredo veio correndo com Lucas atrás. Segurou a filha em cada ombro. Ela sentiu aversão ao contato do pai, afastando-se como o diabo da cruz. O homem assustou-se, teve pena e medo dela. O coração sentiu a perda da filha que já dormira em seu regaço.

- Tenha fé em Deus, minha filha.

Ela não respondeu, ficou olhando para a rua, molhando-se, quase feliz por estar contrariando os costumes da casa. Godofredo deixou-se molhar. A chuva tornou-se irrelevante frente ao estupor de Nevinha. Lucas, pasmo, consentiu que os salpicos cobrissem seu rosto; deixar-se molhar era o máximo de solidariedade ao drama de seus hospedeiros.

Choveu o dia inteiro. As cismas com as agonias da filha foram interrompidas quando o pai a conduziu para o quarto, recomendando que vestisse roupa enxuta. Depois, foi para a cozinha beber água; encostou a mão na parede para se refazer do susto e foi jogado num impulso para o chão. Em cima, na divisória entre o quarto da filha e a cozinha, havia um fio descoberto. A corrente vazara para a parede. Lucas veio correndo:

- Sente-se, seu Godofredo. Beba mais água. O senhor levou um choque elétrico. Eu faço o reparo nos fios. Sou eletricista.

Lucas foi à porta do quarto de Nevinha, advertiu para o perigo do contato com a parede. O conserto demorou todo o dia, com a chave geral da transmissão de eletricidade desligada. À noite o televisor foi ligado, até para desfazer as impressões de Nevinha possessa, e do pai que escapara do risco de ter o coração interrompido.

Nevinha não saiu do quarto para almoçar nem para jantar, mesmo tendo preparado as refeições. Godofredo não lhe perguntou nada. Lucas não inquiriu com olhos curiosos, comeu e dormiu outra noite na residência que lhe dera abrigo numa noite de inverno. Godofredo não saiu para o bar, teve pesadelos na rede em frente a Lucas. A filha não rezou. O sacrifício que se impusera fora a cota de homenagem ao santo de proteção incerta.

Um céu pardacento cobriu o rincão quando amanheceu. Não chovia, embora as nuvens não escondessem a ameaça de outro aguaceiro. A rua agora se deixava cobrir por nuvens de mosquitos voejando sobre os charcos. Podia-se sair, embora nenhum morador estivesse petrechado para o inverno. Olhando para a rua, maginavam-se seguros em suas casas pobres, resistentes a duas ou mais invernadas. Ninguém se atrevia a sair, nem a sugerir que um peregrino fizesse uso do juízo para dar com os pés na margem empapada da rodovia.

Lucas queria seguir seu rumo do mesmo modo como surgira, do vácuo. A casa de Godofredo não era um vácuo, era um retiro carregado de miasmas. Ele os ignorava, fingia que não os via nos goles encorpados de cachaça. Nevinha, feito um caracol, deixara-se impregnar pelo cheiro de lodo que de pouco em pouco surgia nos cantos de seu quarto, da cozinha, onde a umidade da pia se misturava às manchas de água na parede. Quando não tinha o que fazer, encafuava-se no quarto, estirando os cabelos com a escova; estirou-os tanto até parecer-se com uma vestal por livre escolha. Lucas, no terceiro dia, comensal e vigiante dos precários fios que davam luz a casa, partilhou mudo do maior problema: a inquietação de Nevinha, de peitos duros e pentelhos escassamente podados aos vinte e nove anos. Ela acariciava-os toda noite, sob o lençol de ralo morim, maginando outra mão nos pêlos virgens de sua boceta.

A noite veio com mais chuvas. A tempestade trouxe consigo uma velha que, quarenta anos antes, sofrera da mesma agrura vivida por Nevinha. Uma vestal de cabelos estirados, brancos, de mistura com raros fios escuros; no rosto, um mapa de rugas, cada uma com enredos de desamores; os olhos não se moviam, descultos do próprio rosto.

Godofredo conhecia os bruxedos da velha; numa incursão e noutra aos fundos da casa, munira-se do guarda-chuva e conseguira uma entrevista furtiva com Antonina, benzedeira de Aquiraz. Viera uma única vez, quando Nevinha se tornara moça, o sangue escorrendo entre as coxas. Agora, devia sossegar o bulício de sua corola vaginal.

Trancou-se, ela, com Nevinha no quarto. A reza podia demorar, posto que trouxera de seu quintal um ramo de manjericão. A moça obedeceu à velha. Sabia que estava doente das entranhas, que logo sossegaria caso um homem de tronco forte a cobrisse da cintura para baixo. Mas tinha medo de Antonina, de sua autoridade sobre a sorte de moças mais novas que ela. Fosse outra, teria conjeturado sobre o chibio ainda fechado da benzedeira, sobre o perigo de a cola que o fechara, grudar-se nos seus pentelhos novos. Fiou-se, pois, na experiência da velha, e entreviu, remota, a chance de descobrir como alforriar o sexo.

Godofredo tinha respeito a Antonina, não tinha medo de seus olhos fundos. Quando a filha trancou-se com a velha, temeu, vindo da chuva, um punhado de quebrantos. Convinha sair de casa para deixar a fada remover a pombagira.

- Seu Lucas não tem o costume de beber?
- Não, senhor...
- Pois vai ter a partir de hoje. Vamos para a venda de Gumercindo. Pode pedir a mortadela que deixou seus olhos arriados.

Gumercindo assustou-se vendo Lucas vestido com outra roupa. Deduziu que o rapaz se dera bem nos costumes de Godofredo, na ausência da esposa, com a filha que nunca tivera namorado. Não esperou que Godofredo pedisse a bebida. Há três dias que não o via e derramou o líquido acima da conta.

- Salve, Godofredo. Chuva muita é festa de sertanejo. Pegou a gota, se mal pergunto?
- Não peguei nem a gripe e escapei de choque elétrico. Bote outro copo que meu amigo Lucas é quem precisa se prevenir da gripe. E corte um naco da mortadela. O rapaz é chegado a chouriço.

De costume o piso do bar ficava sujo; agora, a lama trazida por saltos de borracha, deixara uma trilha entre o balcão e a porta de saída. Godofredo mortificou-se na bebida até certificar-se de que a alma estava beneficiada. Não deixara a filha entregue aos vexames da carne. Nevinha não bebia, mas acreditava nas rezas, no ramo de manjericão tão de uso de Antonina. Lucas bebeu uma única vez e ouviu a longa conversa de Godofredo.

- Nevinha já devia ter casado. Mas é a única filha que tenho e a mãe não a educou para a vida, cuidou dela como se fosse uma flor. Precisa se casar, mas com homem estabelecido, com profissão e casa para morar.

A cachaça amolecera os sentimentos de Godofredo, pronto para fazer confidências. Lucas ouviu sem dizer palavra, sem tirar os olhos dos olhos do outro, nem da bebida que descia sem visco em sua garganta.

Antonina apareceu com os panos longos da vestimenta e os cabelos estirados pela chuva. Seguiu a trilha de lama no meio do salão. Gumercindo, que fora confidente de Godofredo, adivinhou o assunto que a bruxa tinha no juízo. A velha não tinha os olhos mortos, mas mantinha-os na direção do corpo; mesmo que pressentisse perigo de seu lado, não olhava de través, tamanho era o poder de seus instintos. Olhou para Godofredo com a coação de seus olhos, pouco se importando com o juízo temporão de Lucas.

- Está sossegada, mas é coisa de pouco tempo. Se não melhorar com mais rezas, terá que fazer penitência, de preferência a padre Cícero. Case sua filha, Godofredo. Ela vai criar mofo naquele quarto escuro.

Ela olhou para Lucas movendo o corpo, para não ter que mexer nos olhos duros; disse com mais autoridade ainda:

- A moça teve uma crise com a visita de um estranho. Pode ser um aviso.

Virou-se e foi embora.

Gumercindo não ouviu a conversa, mas intuiu, perplexo, o que poderia ocorrer dali em diante.
A velha sumiu na rua; a rouquidão de sua voz carregou de suspeitas as tenções dos dois homens.

Godofredo não pôs a rede na sala para vigiar os passos de Lucas; deitou o corpo na cama, rendendo-se à sorte. Não teve pesadelos e o resíduo de consciência que teve durante o sono, foi para confirmar os bons agouros que Lucas trouxera.

Lucas, de madrugada, foi mijar. Sentiu outra vez o cheiro de lavanda saindo do quarto de Nevinha. Quando voltou para a rede, a porta do quarto dela estava aberta. Não viu o corpo nu da moça, mas sentiu-o vivamente misturado à escuridão do quarto. A lavanda juntou-se ao cheiro de terra. Ela estava em pé, pedindo sem voz o carinho do homem.

Ninguém, daquele momento em diante, ouviu o açoite da chuva nas telhas.

Lucas espreitou o primeiro raio de sol para sumir dali sem o constrangimento da despedida. Quando deu a primeira volta na chave da porta, sentiu a mão de Godofredo em seu ombro.

- Case-se com ela...

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