23 abril 2007

Novo ciclo de cinema?


Na Continente Multicultural, por Marcelo Costa:
A hora e a vez dos curtas
Os curtas pernambucanos têm uma história de paixão, adversidade e apropriação
Existe um consenso equivocado de que curtas-metragens, a julgar pela sua duração, são obras de menor relevância do que os filmes – assim diferenciados os longas-metragens. Essa idéia talvez decorra de um reducionismo imposto pela indústria cinematográfica, que produz, distribui e divulga o produto de acordo com seu potencial comercial, sem necessariamente avaliar a expressividade e a qualidade da obra. Um bom argumento para contradizer essa tese é a nova safra de curtas-metragens pernambucanos; filmes marcados pelo vigor das narrativas, pela versatilidade de temas e estéticas e por uma corrente romântica – baseada na paixão pelo cinema – que flui no fundo e une obras bem diversas.

Sem estrutura de produção – falta de recursos financeiros, técnicos e humanos –, a retomada do cinema em Pernambuco deveu-se sobretudo à vontade de expressão de uma geração inquieta e descontente, que via os holofotes se voltarem apenas para a cena musical do Estado. Como afirma o polivalente cineasta Daniel Bandeira, da Símio Filmes, “o cinema pernambucano nasceu do rancor e, talvez por isso, carrega consigo um conteúdo visceral”, referindo-se à reação à falta de condições do Estado para a realização. Assim, a produção local soa como um grito de rebeldia contra essa indústria que a exclui e marginaliza em obras autorais, e, portanto, bastante singulares. Independentemente da qualidade, são filmes incomuns aos olhos “estrangeiros”, concebidos sob referenciais diversos que não seguem uma cartilha acadêmica.

Só neste ano, três curtas-metragens de realizadores pernambucanos figuram como destaques em festivais nacionais e internacionais: Uma Vida Outra Vida, produção da Símio Filmes dirigida por Daniel Aragão, sobre a descoberta e a imposição da maturidade diante de um conflito; Noite de Sexta Manhã de Sábado, belo exercício em tom de Nouvelle Vague sobre o amor e o tempo compartilhados, capazes de unir duas pessoas distantes, de Kleber Mendonça Filho; e Eisenstein, deliciosa homenagem ao ícone russo Sergei Eisenstein e ao cinema como forma de expressão artística, de Leonardo Lacca, Raul Luna e Tião, da Trincheira Filmes – em processo de finalização do próximo projeto, Muro das Lamentações. São filmes bem distintos, ligados pela paixão pelo fazer cinema.

Os dois primeiros saíram ganhadores do prêmio de melhor filme no último Festival de Brasília, nas categorias 16mm e 35mm respectivamente, e atestaram o prestígio dos pernambucanos em festivais. Kleber Mendonça Filho já havia ganho a láurea em 2004, com Vinil Verde, adaptação de uma fábula russa sobre a perda e o amor necessários ao amadurecimento, contada em fotos-still em homenagem a La Jetée de Chris Marker. O filme, produzido pela Ruptura e Símio Filmes, saiu com quatro prêmios na categoria 35mm, uma prévia do sucesso internacional.

Em 2005, Rapsódia Para um Homem Comum, de Camilo Cavalcante – cineasta à flor da pele, premiado como melhor diretor, pelo visceral A História da Eternidade – , levou quatro prêmios, numa saga tecnicamente bem cuidada de amor, solidão e busca da felicidade, que, apesar da homenagem a curtas pernambucanos, descambava num sentimentalismo excessivo. Também nesse ano, Entre Paredes, de Eric Laurence, saiu como o grande vencedor de Gramado e partiu para bem-sucedida carreira em festivais nacionais e internacionais, enquanto o documentário sobre o manguebeat, O Mundo é uma Cabeça, de Bidu Queiroz e Cláudio Barroso, fechou o ano com 10 prêmios.

Já premiado em Brasília com o vídeo-clipe Ireny, da Mula Manca e a Triste Figura, co-dirigido por Gabriel Mascaro, Daniel Aragão acabara de participar do Festival de Hamburgo com A Conta-Gotas, seu primeiro curta-metragem. Uma Vida Outra Vida não convence, mas parece pegar carona no prestígio da safra pernambucana e emplacou, em 2007, participações no Festival de Berlim e Clermont-Ferrant, o principal evento de curtas-metragens do mundo.

No começo deste ano, Kleber foi homenageado no Festival de Roterdã, onde foi exibida sua filmografia, composta por cinco filmes em diferentes formatos. Formando uma espécie de trilogia do medo, Enjaulado, sobre a paranóia da violência nos grandes centros urbanos e homenagem confessa a Repulsa ao Sexo de Roman Polanski; A Menina do Algodão, um exercício co-dirigido por Daniel Bandeira, inspirado na lenda urbana de uma menina morta que aterrorizava crianças nas escolas da cidade nos anos 70; e o rubi Vinil Verde, exibido na quinzena de realizadores do Festival de Cannes e comprado pelo Canal + (Plus). Eletrodoméstica – também adquirido pela emissora francesa – e Noite de Sexta Manhã de Sábado fecharam a mostra.

Essa diversidade de formatos, aliada à modernização de técnicas e equipamentos em vídeo, permitiu diferentes formas de expressão e linguagem, evidenciadas na pluralidade das produções pernambucanas. Assim, os curtas-metragens contribuíram para a consolidação do cinema no Estado, ainda que dentro de uma estrutura precária, dependente de concursos como o Ary Severo e Firmo Neto, promovidos pela prefeitura e pelo governo, ou de iniciativas do MinC. Entretanto, apesar de marginalizados em seu processo de produção, os curtas pernambucanos são reconhecidos e incorporados pela própria indústria que os renega, numa comprovação da apropriação descrita pelos estudos culturais de Gramsci. Enquanto o cinema em Pernambuco sangra para produzir, seus filmes pulsam com vigor à espera de que novos prêmios e novos olhares sejam concedidos a essa vitalidade. Talvez seja a hora de desfazer um equívoco.

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