Neoliberalismo e
democracia
Luiz Gonzaga Belluzzo, CartaCapital
No
ensaio recente Néolibéralisme
classique et nouveau néolibéralisme, Pierre Dardot cuida
de seu tema preferido, o neoliberalismo, suas
origens e evolução. Julguei oportuno revisitar a contraposição entre
o liberalismo clássico e
os neoliberalismos em
um momento delicado da vida brasileira. Muitos
brazucas se contorcem entre a adesão aos movimentos em defesa da democracia sem
adjetivos e os receios de perder na caminhada os inalienáveis direitos sociais
e econômicos duramente conquistados.
Vamos às origens. Ainda antes da Segunda Guerra Mundial,
em carta a um amigo, Wilhelm Röpke, um dos
corifeus do neoliberalismo, desvelou
a incompatibilidade entre seu ideário e a democracia geral e irrestrita. “É
possível que minha opinião sobre um ‘Estado forte’ (um governo que
governa) seja ainda ‘mais
fascista’, porque eu realmente gostaria de ver todas as
decisões de política
econômica concentradas nas mãos de um Estado vigoroso e
totalmente independente e não fragilizado pelas forças pluralistas de
natureza corporativista… Estou procurando a força do Estado na
intensidade e não na abrangência de sua política econômica. (…) Compartilho
a opinião de que as velhas fórmulas da democracia parlamentar demonstraram
sua futilidade. As pessoas precisam se acostumar com o fato de que há também
uma democracia presidencial,
autoritária, sim, e até mesmo – horribile dictum –
uma democracia
ditatorial.”
Michel Foucault discorreu
com abrangência e profundidade sobre o significado do neoliberalismo. Foucault dá
importância secundária à hipótese mais óbvia que afirma o predomínio dos
nexos mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a
sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é
uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de
mercadorias quanto os mecanismos da concorrência… Trata-se de fazer do
mercado, da concorrência e, por consequência, da empresa o que poderíamos
chamar de ‘poder enformador da sociedade’”.
Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz Foucault, o neoliberalismo é
uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não
pretende suprimir a ação do Estado,
mas introduzir a regulação do mercado para preservar a concorrência e
impedir as interferências nefastas da proteção social aos “ineficientes”.
Em 1942, Wilhelm Röpke revisitou
as categorias Dominium e Imperium. Dominium significa
“dominância sobre as coisas”, Imperium significa
“dominância sobre os homens”. Ele diz: “Imperium e Dominium estão
separados no mundo do liberalismo clássico”. Já o neoliberalismo deve
manter a convergência entre essas duas esferas, o que corresponde à visão de
um “governo duplo”: haveria um mundo de economia e da propriedade, coexistindo
com outro mundo, o dos espaços jurídico-políticos onde vivem e padecem os
homens de carne e osso.
Corey Robin, em artigo sobre as afinidades
entre Nietszche e Hayek, afirma que o
economista austríaco admite a necessidade das “decisões de uma elite
governante” com antídoto às trapalhadas da malta ignara. Nas páginas do
famoso livro The
Road to Serfdom, Hayek escreve:
“O empregador e o indivíduo independente estão empenhados em definir e
redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande
medida, de se adaptar a uma situação dada”. Ao trabalhador de Hayek faltam
responsabilidade, iniciativa, curiosidade e ambição. É um perdedor.
Por isso, nos escritos político-jurídicos, Hayek não hesita
em escolher o liberalismo diante
dos riscos da democracia. “Há um
conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo –
não se trata da democracia como tal, mas de determina- das formas de
organização democrática… Agora tornou-se indiscutível que os poderes da
maioria são ilimitados e que governos com poderes ilimitados devem servir às
maiorias e aos interesses especiais de grupos econômicos. Há boas razões
para preferir um governo democrático limitado, mas devo confessar que prefiro
um governo não democrático, limitado pela lei, a um governo democrático
ilimitado (e, portanto, essencialmente sem lei).”
O poeta e crítico literário Anis Shivani reconhece
que as leis do Imperium conseguiram
submeter os mais frágeis. “Em vez de reivindicarem a proteção social como um
direito legítimo, os cidadãos sentem-se culpados, vexados e deprimi-los por
sua dependência dos programas governamentais.”
Convencidos de sua liberdade, os indivíduos livres entregam seu
destino aos grilhões da concorrência e às ilusões da meritocracia.
Transtornados por suas culpas, os perdedores acomodam-se aos suplícios
da exclusão e
da desigualdade.
Só
não vê quem está satisfeito https://bit.ly/2CwMpND
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