O voo do morcego
Cícero
Belmar*
Quando começaram a surgir os primeiros
casos da covid-19, ainda na China, a sempre atualizada Maria Lúcia, minha amiga
de prosa e verso, foi ao Google e apurou o que havia disponível sobre a doença.
Em pouco tempo, ficou especialista:
– Os cientistas acreditam que o
novo coronavírus pode ter vindo de um morcego, sabia disso?
A moléstia que se alastrava no
mundo, e Maria Lúcia comentava:
– Eu sempre achei que esses
bichos não são tão inofensivos quanto afirmam por aí.
Disse o “não” como se
negritasse a palavra. Mais adiante, vieram novas pesquisas e ela constatou: “Os
pesquisadores, agora, não acham mais que a doença seja disseminada pelo
morcego, mas de pessoa para pessoa. Mesmo assim, não abro a guarda. Todo mundo
sabe que esse animal transmite muitos vírus”.
Convém explicar. Maria Lúcia é
uma senhora bem humorada, divertida e moderna, que adora literatura e
gastronomia. Energia ótima, ela está sempre de bem. E, realmente, “odeia”
poucas coisas nesta vida. Morcego, por exemplo, é uma delas.
Na verdade, minha amiga nutre
um misto de asco e medo pelos morcegos. Pois numa dessas manhãs tediosas a que
o isolamento social decretado pela pandemia nos obrigou, Maria Lúcia encontrou
cocô de morcego na varanda do apartamento onde mora. É na varanda onde ela
conserva lindas plantinhas ornamentais, a que chama de “minhas meninas” e,
todos os dias, limpa e rega. Junto do seu mini jardim de flores e folhas
simbólicas, estava “aquele nojo”.
– Como é que você sabe que era
de morcego?
Exatamente por nutrir pavor aos
visitantes noturnos, vive pesquisando sobre eles no Google. Onde, inclusive, já
viu foto do tal material orgânico.
Diga-se de passagem, não era a
primeira vez que os abusados faziam as necessidades fisiológicas no apartamento.
Mas era a primeira vez no período da pandemia.
O site de busca completava as
curiosidades:
– Eles vivem em árvores das
vizinhanças e entram em dupla nas residências.
– Eles passam pelas telas das
janelas dos apartamentos.
– Eles brigam entre si, quando
estão no mesmo espaço, onde fazem cocô e saem.
Na noite do mesmo dia,
certamente auto sugestionada, Maria Lúcia disse que teve a sensação de que os
insetívoros fizeram um rasante crepuscular dentro do apartamento.
Desde então, minha amiga cumpre
duplo isolamento social: reclusa no apartamento, para atender às recomendações
das autoridades sanitárias. E a partir das 17 horas, trancada no quarto de
dormir, para não cruzar com o animal.
Outro dia, eu lhe telefonei e
ela contou:
– Vivo um super confinamento.
Horror dos horrores.
Os cientistas podem até ter
descartado que o vírus seja originário do morcego. Mas, de acordo com a
reação de Maria Lúcia, o voador tem se mostrado uma estratégia eficiente para
garantir os níveis ideais de recolhimento social.
*Cícero Belmar é escritor
e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e
livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
Nem clarins, nem tambores. Muita luta, sim https://bit.ly/2CwMpND
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