21 julho 2020

Palavra de poeta


Jazigos da memória
Chico de Assis

Uma miragem idílica me sustenta
em tempos de provação e desalento.
Procuro dar-lhe a concretude
da carne
mas temo o vazio
em torno da paisagem:
conheço apenas o tédio.

A hora esmigalhada
com-passada
marca a cada passo
o voo do pássaro
e as asas partidas do sonho.

Durante anos busquei o encontro
mitigando silêncios
maturados em desamor.

Durante anos
tenho tentado planos
tão confusos
ah, tenho escutado gritos
incontidos do pecado
à beira do abismo.

Mas eis aqui o resultado
de todas as rondas:
na atmosfera viciada
das casas de espetáculo;
na cosmovisão extenuante
das coletividades ressentidas;
no egocentrismo da mais
extremada individualidade
só encontrei a face da traição
(gargalhada do ódio)
e o estertor da solidão
(lacrimejar da dor).

Assim me exponho
(e proponho) ao tempo
solitário clarim madrugada
em notas pelos muros.

Durmo no chão
perseguido nas esquinas
da violência inimiga.

Meto-me em ruas
sem nome em roupas
que não são minhas.

Ouço bater os portões
de casas não construídas
entre países e ruínas.

Assim me cruzo e divido
com outros no labirinto.
E ainda assim eu sonho.
Conservo em brumas
noturnas
avalanches de sol
entrecortando o túnel.

Tudo em mim
foi em falso e dúbio.

Falto de ódio
ordenei ao povo
odiar nas ruas.

Falto de amor
marquei encontro
na esquina dos amantes.

Agora vejo tão claro!
Na noite do meu corpo
(sem estrelas)
chego enfim ao porto
das lembranças esquecidas.

O fim da jornada
é sempre o reinício
de novas rupturas
entre corpo e espírito.

Sei que o recomeço é atraente:
condensa a ousadia dos inícios
com a cautela dos fins.

Mas até quando
reconhecer/recomeçar
será em mim
o inelutável ciclo
das opções mal feitas?

Recolho-me aos jazigos
perpétuos da memória
para delir
solitário em dor.


(Set/76—julho 2002)

[Ilustração: Van Gogh]
Leituras que aliviam a barra https://bit.ly/3dVOJM7 

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