“O Dilema das Redes” expõe o problema, mas ignora a solução e humaniza os culpados
Para prender a atenção, o filme segue um roteiro previsível. Humaniza os culpados, espetaculariza o problema, dramatiza as consequências e não traz soluções práticas
Mariana Serafini, no portal Vermelho
Há poucas semanas a Netflix lançou “Dilema das redes”, o
documentário dirigido por Jeff Orlowski que denuncia o mau uso feito pelas Big
Techs (Google, Facebook, Instagram e várias outras) com os dados dos usuários.
Apesar de uma ou outra informação interessante – nada necessariamente novo – o
filme peca no ponto chave da questão: não é um dilema. Fora isso, traz
entrevistas com meia dúzia de designers, engenheiros de software e
programadores do Vale do Silício. Eles trabalharam para construir esse sistema
que hoje nos controla. E não é porque se arrependeram, depois de ver o estrago,
que são inocentes.
O “dilema” apresentado no
documentário é falso, uma vez que a proteção de dados dos usuários deveria ser
um direito e não uma mercadoria. É daí que o debate tem que partir, e não de
algumas poucas soluções individuais como “use menos as redes sociais” e “limite
o uso das telas para as crianças”.
Há mais de uma década existem movimentos ao
redor do mundo que denunciam o impacto negativo que essas empresas poderiam
causar. O lema dos cypherpunks é bastante razoável: “privacidade para o
cidadão, transparência para os poderosos”. Porém, mexer com esse sistema é
colocar o dedo direto na ferida de um dos negócios mais lucrativos do mundo
contemporâneo e, ao mesmo tempo, mais nocivos para o futuro da humanidade. É
por isso que um dos expoentes, Julian Assange, está preso e com a cabeça a
prêmio. Se for condenado, pode ser extraditado para os Estados Unidos e morto.
E tudo que ele defendeu foi uma solução para o que Orlowski apresenta como um
dilema irresolúvel.
Em entrevista à Carta Maior há sete anos, logo
que começou seu longo exílio na embaixada do Equador em Londres, Assange
qualificou a internet como “o sistema nervoso da civilização”. Ele alertava
sobre como as redes sociais coletam os dados dos usuários e fazem disso os mais
diversos usos que podem ter fins comerciais ou políticos. A solução só pode ser
a regulação, não há fórmula mágica. O problema é que o sistema nervoso adoeceu
e a sensação que se tem é de uma distopia acelerada pela pandemia do
coronavírus.
Distopia, aliás, é uma palavra
que aparece muito no documentário. O mecanismo de algoritmos usados pelas redes
sociais chegaram tão fundo nas nossas vidas que hoje elas sabem mais de nós que
nós mesmos e com isso conseguem prever e induzir nossas ações e pensamentos.
“Dois bilhões de pessoas terão pensamentos que não teriam normalmente, porque
um designer do Google disse: é assim que as notificações vão aparecer na tela
para a qual você olha quando acorda”, confessa Tristan Harris, ex-designer que
trabalhou na criação da interface do Gmail.
Harris é o “protagonista” da
saga de ex-funcionários das grandes empresas que se arrependeu. Ao se dar conta
do que estava criando, ele fez um manifesto, chegou a chacoalhar reuniões na
Google e no final não aconteceu nada. Foi assim que ele saiu da empresa e se
tornou um ativista – não exatamente pela proteção dos dados – pelo uso “ético”
das informações.
Além de Harris, o documentário traz depoimentos de outros
funcionários do Pinterest, Facebook, Uber. Todos se dizem muito chocados com o
rumo que as coisas tomaram. E juram com os olhos fixos na câmera que também são
vítimas do monstro que criaram. Essas redes nos conduzem, com seus sistemas de
algoritmos, por um caminho difícil de voltar depois do primeiro “like”.
O objetivo principal de todo o
sistema é nos manter presos às telas o máximo de tempo possível. Afinal, somos
nós o produto. Precisamos postar, receber respostas, clickar nos links de
propaganda e, claro, comprar, comprar muito. Mas esse mecanismo perverso atinge
a vida humana em muitas esferas. Desde o vício em redes sociais, até toda uma
nova geração com distúrbios de ansiedade e depressão pelo uso excessivo das
telas e a desestabilização de democracias ao redor do mundo.
As eleições no Brasil em 2018
são um exemplo de como estamos vulneráveis ao capitalismo de vigilância. O
disparo de fake news em massa pelo WhatsApp foi um dos elementos que levaram
Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Mas antes, outros países já haviam sido
usados como laboratórios desse tipo de experiência. Assange denunciava isso
quando dezenas de nações africanas tiveram suas eleições manipuladas dessa
forma. Mas enquanto não chegou em grandes economias, o problema não recebeu a
atenção que merecia.
Agora soa como um dilema irreversível porque parece impossível
imaginar o mundo sem as redes sociais. A questão é que não se trata de acabar
com as redes e sim de regular a atuação das empresas. Elas não podem estar
acima do Estado, dos governos e das Constituições. Não podem decidir o destino
de nações inteiras e sair impunes.
Para prender a atenção, o filme
segue um roteiro previsível. Humaniza os culpados, espetaculariza o problema,
dramatiza as consequências e não traz soluções práticas. Tudo que os
ex-funcionários apresentam como uma possível saída para o falso dilema é uma
regulação econômica. Isso obrigaria as empresas a serem mais “transparentes”
com o destino que dão aos dados de quase um terço da humanidade.
E mesmo depois de mostrar que o
problema é muito mais profundo do que se imaginava, o documentário apela para
soluções individuais. Como se ao controlar o uso das telas, mudar as
configurações de notificações do celular ou abandonar as redes sociais fosse
resolver o caos em que fomos lançados. A resposta para o dilema é a regulação:
“privacidade para os cidadãos, transparência para os poderosos”. Defender esse
lema é atacar o próprio capitalismo. Por isso Assange está a um passo de ser
assassinado. Quem controla tudo que a gente sabe e ainda vai vir a saber não
aceita esse tipo de ameaça ao sistema. (Fonte:
Carta Maior)
Nas ruas,
nos salões e nas redes: para superar a crise https://bit.ly/3lg3rl8
Nenhum comentário:
Postar um comentário