27 setembro 2020

Vaidade e desejo


A DANÇA DO PODER
Ronaldo Correia de Brito, em seu site

No balé Clytemnestra, da coreógrafa americana Martha Graham, há uma passagem que me marcou profundamente, retornando sempre às minhas reflexões sobre o poder. Vocês lembram a tragédia grega. Agamêmnon, irmão de Menelau e cunhado de Helena, assume o comando dos gregos, na guerra contra Troia. Ao chegarem à baia de Áulis, de onde partirão os navios, o rei comandante se ocupa a maior parte do tempo em caçadas.
No seu afã, ele abate uma cerva magnífica, consagrada à deusa virgem Ártemis. Enfurecida com o desrespeitoso mortal, a deusa manda baixar uma calmaria sobre o oceano e os gregos não têm como partir, por falta de ventos que inflem as velas das embarcações.
Consultam o oráculo e a sentença não poderia ser mais cruel: os ventos retornarão se o rei sacrificar sua filha mais velha, Ifigênia. Agamêmnon manda buscar a filha distante, mentindo que irá casá-la com Aquiles. A inocente moça chega na companhia da mãe Clytemnestra, que desconhecia a trama do marido e, apesar de todos os esforços, não consegue evitar o revoltante sacrifício. O resto vocês estão cansados de saber. Os gregos partem, combatem durante dez anos. Quando Agamêmnon retorna para casa, a rainha havia colocado um amante no leito do esposo.
A dança de Martha Graham é arrepiante. A infeliz rainha, obcecada pelo desejo de vingar a filha inocente, trama a morte do marido. Ela e o amante Egisto decidem assassiná-lo e se apoderarem do trono de Micenas. Agamêmnon trouxera como presa de guerra a princesa Cassandra, filha do rei troiano Príamo, que tinha o dom de prever o futuro. Mas, sobre ela pesava uma maldição de que ninguém acreditaria em suas profecias. Cassandra adverte o rei sobre a trama que o levará à morte, mas ele não crê em suas palavras.
A cena que tanto me marcou é a seguinte: Clytemnestra finge alegria com o retorno do marido e lhe prepara um banho. Enquanto ele se entrega ao deleite, a rainha o mata com um punhal. Transtornada de poder e sangue, ela joga sobre as costas o manto do marido e caminha pela casa. O Destino, representado por um bailarino de estatura descomunal, realçada pelos coturnos do teatro grego, põe o cajado sobre o manto que a rainha enverga e ele cai no chão. A realeza se esvai. O espectador estremece diante da representação de quanto é fugaz o poder humano. Não há texto, apenas um cajado que prende o manto ao chão, tirando da rainha o amparo de um símbolo antigo.
Clytemnestra é morta pelos dois filhos, Orestes e Electra, que vingam o pai. Tocada pela tragédia da rainha infeliz, Martha Graham imaginou um final feliz, em que mãe e filhos se reconciliam e são perdoados pelos deuses.
Não sei que deuses nos perdoarão a vaidade e o desejo de poder. Sei que todas as vezes em que me deixo contaminar por essa quimera, O Destino, que nunca descansa nem fecha os olhos, atua com uma precisão absoluta. O barulho da queda do manto eu escuto nos sintomas de uma gripe, numa dor de coluna, num transtorno qualquer da saúde. As doenças, as calamidades, as guerras e a morte sempre atuaram estabelecendo limites ao poder dos homens. São a prova de nossa fragilidade, nos advertindo para avaliarmos melhor nossos supostos grandes feitos e o esforço gasto neles. É necessário não perder a medida das coisas. Como está escrito no Tao: quem se ergue na ponta dos pés, não pode ficar por muito tempo.
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