O punitivismo midiático em alta
A famosa "garantia da ordem
pública", um conceito abstrato, aplicado e manipulado ao gosto do
magistrado, é o jargão usado, em regra, para manutenção de prisões preventivas,
que se prolongam no tempo indefinidamente.
Tania Maria de Oliveira, Carta Maior
O sistema carcerário possui, segundo dados oficiais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgados em junho de 2020, cerca de 43% de presos provisoriamente, que ainda não foram condenados pela Justiça. Quando se aprecia os números dos Estados pode-se chegar, em alguns deles, ao drama de 60% de presos sem julgamento.
A famosa “garantia da ordem pública”, um conceito abstrato,
aplicado e manipulado ao gosto do magistrado, é o jargão usado, em regra, para
manutenção de prisões preventivas, que se prolongam no tempo indefinidamente.
Já é lugar comum a afirmação, largamente comprovada, de que
temos um sistema penitenciário absolutamente falido, superlotado, e que não
gera qualquer expectativa de ressocialização. Nossos presídios são locais
degradantes e de reprodução de violência, de relações de corrupção entre
detentos e agentes do Estado, que não oferecem saúde, trabalho, estudo ou
possibilidades de reconecção do indivíduo infrator com a sociedade.
Não existem políticas prisionais no Brasil de caráter
continuado. A ação de governantes, quando ocorre, gira em torno da construção
de novas unidades penitenciárias, reforma e ampliação das já existentes e,
eventualmente, a contratação de servidores. O que, em regra, ocorre após alguma
rebelião ou uma fuga de presos. As poucas experiências vivenciadas de políticas
públicas consequentes foram interrompidas em gestões seguintes, ao mudarem os
governos e as orientações.
A população carcerária do Brasil cresce exponencialmente a
cada ano, sob os olhos negligentes de dirigentes públicos. Atingiu, no ano de
2019, 860 mil presos, ainda segundo os dados do CNJ. É a terceira maior
população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. E a
legislação produzida no Congresso Nacional, longe de enfrentar o problema, cuida
de agravá-lo ainda mais. A quantidade de novos tipos penais criados nas duas
últimas décadas, e de recrudescimento das penas naqueles já existentes, é
assustadora.
Inúmeros estudiosos da segurança pública apontam que, entre
as várias medidas de políticas públicas necessárias para enfrentar
verdadeiramente o problema do encarceramento em massa, está o investimento em
uma legislação que amplie as alternativas penais para crimes não violentos, a
revisão da Lei de Drogas, e redução das prisões provisórias.
Foi nesse espirito que, contrariando a regra geral, o
Congresso Nacional, ao aprovar a Lei 13.964/19, deu ao parágrafo único, do art.
316, do Código de Processo Penal, redação em que fixa prazo, estabelecendo um
maior dever de cautela por parte das autoridades que eventualmente decretem
prisões cautelares, sob pena de a prisão ser considerada ilegal: “deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção
a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de
tornar a prisão ilegal”.
Foi esse o dispositivo, de clareza meridiana, utilizado pelo
ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, na concessão do Habeas Corpus 191.836, ao reconhecer o excesso de prazo em uma prisão decretada,
sem culpa formada, em 15 de dezembro de 2019, mantida em 25 de junho de 2020 em
sede de apelação, e não tendo havido ato formal dos agentes do sistema de
justiça nos últimos 90 dias, como obriga a norma do CPP, em expressa previsão.
A inércia do juízo caracteriza coação ilegal.
Todo o restante do debate, sobre quem é o paciente do Habeas Corpus, sobre a crise interna que se estabeleceu no STF quando
o atual presidente resolveu cassar a liminar concedida pelo colega, são
elementos “extra processuais”, temas incensados para alimentar os holofotes
midiáticos e o punitivismo penal.
Sobre o primeiro ponto, não encontra sentido que haja um
Código de Processo Penal para um acusado de tráfico, e outro para denunciados
por qualquer outro crime. A lei é uma só. Sobre o segundo, não é a primeira vez
que o ministro Fux adota tal procedimento, embora não possua sustentação
regimental para tanto. Basta lembrar quando, no exercício da presidência em um
final de semana em setembro de 2018, cassou a decisão liminar concedida pelo
ministro Ricardo Lewandowski, que permitia entrevista do ex-presidente Lula a
veículos de imprensa. Aparentemente ele se enxerga como uma instância revisora.
Mas, embora seja profundamente lamentável a repercussão do
fato e o equívoco de análise sobre a decisão de Marco Aurélio Mello, eles se
resolvem por lá. A questão maior que deve nos preocupar nesses tempos bicudos,
é que esses elementos, que desviam e desbordam, com os quais a grande mídia
pauta a sociedade, constrangida pelo medo da violência, desviam o foco do verdadeiro
problema público que se avoluma. E estimulam o Congresso Nacional a rever os
poucos e raros avanços na legislação. Um jogo de perde e perde, uma fulanização
da “lei que soltou o traficante”.
A linha editorial dos veículos de comunicação, bem como as
reações mais comuns da chamada “opinião pública” e sua crescente demanda
punitiva, funcionam historicamente como motores da fábrica de penas que é o
parlamento brasileiro.
Será uma enxurrada de projetos de lei para excluir o artigo.
Aguardemos os próximos capítulos.
Tania
Maria de Oliveira é da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
Sinuoso é o processo de elevação
da consciência cidadã https://bit.ly/2ZVr8pE
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