25 outubro 2009

A poesia de Gerusa Leal

No Blog de Paulo Bentancur:
ALÉM E AQUÉM DO VERSO ("Versilêncios", de Gerusa Leal)
. Não é todo dia que surge um bom livro de poemas. Culpa dos poetas. Em parte, em pequena parte. Em grande parte a culpa é mesmo dos editores, que acusam o mercado dentro de cuja barriga os livreiros, famintos, bradam: “não há leitores de poesia!”. Não? Somos então uma espécie em extinção. Eu e mais uns cinco mil que certamente leem o gênero no Brasil. Parece que o problema não está só com a poesia mas com a indústria editorial, que opta pelo mais fácil como uma criança fazendo o dever de casa. Movida pela pior das obrigações – e por isso não deslancha. Culturalmente não.
. Mas esta é uma discussão longa. Vender, vender mesmo (esgotar edições), claro que a poesia não fará isso. Mas pagar seus custos ao menos, dando, em contrapartida, uma valorização no catálogo das editoras, deixando-os mais nobres, pagando ao editor com a “quota prestígio” – que parece que o Departamento Editorial ignora –, isso ela tem feito sempre que um herói invista em versos: naturalmente, de qualidade.
. Pois Versilêncios, de Gerusa Leal (nascida em Recife e residindo atualmente em Olinda), é desses livros dos quais as editoras não correm atrás. Azar o nosso, leitores dependentes químicos de Literatura com L maiúscula. Não fosse o prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007, da Academia Pernambucana de Letras, que a obra merecidamente ganhou, e o apoio viabilizador da edição, através da lei do sistema de incentivo à cultura, e o livro não viria à luz. Permaneceria inédito, provavelmente, apesar de seus incontáveis méritos, ou dependeria daquelas infrutíferas iniciativas de poetas que, corajosos ou impacientes, pagam do próprio bolso uma edição destinada a não ser profissional mas, literalmente, independente (isto é: independente do mercado, onde não se insere, independente de distribuição, de comercialização e, assim, de recepção, condenada a permanecer à margem).
. O primeiro a torcer o nariz diante do produto é o livreiro, que deseja ver na capa um selo importante. Diante de tal ausência, não dá a atenção devida, não o expõe, e o frequentador da livraria não tem como adivinhar que a obra existe. Obra destinada, portanto, a não existir mesmo.
. Uma vez declarei num programa de tevê de grande audiência, em cadeia nacional: “pior que ficar inédito é publicar mal.” E não publicar mal, só por editoras profissionais, sólidas, e que, lamentavelmente, estão dando às costas à poesia. Mas esta, como escrevi linhas atrás, é outra discussão.
. A pauta aqui é Gerusa Leal, poeta e ficcionista. E, mais especificamente, Versilêncios, que acaba de ser lançado, porém sem a necessária distribuição. De Pernambuco, de onde vem, até chegar ao RS, mais que a enorme distância, separa-o o milagre. Milagre que pôs o livro em minhas mãos por essas atalhos especiais que só os vínculos estéticos somados aos humanos propiciam.
. Tenho lido pouca poesia (porque pouca poesia tem sido publicada) e relido muita, os clássicos (porque estes, adotados, são os únicos diante dos quais o editor não arrisca).
. Versilêncios abre-se já a partir do título, multifacetado, com a tripla carga semântica do neologismo que a poeta criou para batizar seu filho, ufa!, não enjeitado (bendito prêmio...). “Ver silêncios” (poesia, afinal, é imagem, embora também música, e se até o silêncio fala ao poeta, este o desenha em suas metáforas-traço). “Ver” soma-se à primeira sílaba, “si”, de “silêncios”, numa junção que dá em “versi”, “verso” em italiano, e basta pensar em Dante, não exatamente no livro lembrado, mas inevitável quando se pensa em poesia e em italiano, para ver a intensa riqueza significadora do título. E ainda: “Versos” e “silêncios”, isto é, “versos silenciosos” – melhor tradução para o projeto de extremo rigor e de pleno acerto que Gerusa atinge como poeta.
. Eis a tripla encruzilhada que, antes de obstáculo, é abertura para um caminho mais amplo à procura de uma leitura de fato entregue a esses cinquenta poemas singulares.
. A poética de Versilêncios é construção rigorosa, com versos esculpidos, talhados, não tivesse, pela força do ritmo, uma fluência cuja harmonia atinge em cheio sua cadência nunca dura, nunca seca, mas, sim, quase sussurrada e, desta forma, buscando lírica rara: a marcar exatamente porque escolheu entremostrar-se e não o contrário, que é exibir-se com os excessos comuns de uma poesia que não passa de prosa ritmada ao extremo.
. A edição, evento a ser saudado, sobretudo pelas dificuldades que sempre cercam tal fato, está à altura, com introdução e posfácio críticos, ambos de fôlego e com leituras que não causam eco, que não chovem no molhado. Um pouco pela qualidade dos ensaístas, André Cervinskis e Stéphane Chao, um pouco pela própria poeta, que não descuida de um único verso, que escreve silabando. E que, ainda que chegue ao zelo infinito de medir cada som, não se exila do discurso próprio da poesia, o do paradoxo, o da permanente refundação do mundo e da inacabável instauração do real. Um real que é sempre outro, não este, no qual escrevo.
. Citar um poema? Cito um inteiro, o primeiro, no qual a poeta, sem demora, já mostra ao que veio: “não escrevo o que não sinto / amadora que sou / sinto o que não escrevo / jeito de amar a dor // escrevo o que não sinto / salvo a vida / não sinto o que não escrevo / nem percebo que vivi”. Dividido em doze seções, Versilêncios nos leva para um território onde tudo o que lemos-escutamos só grita nos instantes (muitos) em que a beleza é tanta que nos impõe uma resposta: a da emoção estética forte, manifestada em geral quando diante de um livro muito acima da média.
. É o caso.

2 comentários:

Gerusa Leal disse...

Obrigada pela postagem no blog, Luciano. Quem escreve, diuturnamente, feito você, sabe como a gente fica feliz com alguém se debruçando sobre o que a gente escreve.
Abraço

Wilson Torres Nanini disse...

Descobri a escrita de Gerusa recentemente. Foi um grande achado. Certas poéticas acometem as estruturas com que mantemos nossa maneira de ver o mundo. A de Gerusa nos leva para além das fronteiras. Cada vez que leio seus poemas, outras oportunidades se abrem para outros poemas. Estou em um processo muito rico de desvelação do mundo. Abraços!