29 abril 2013

A vida do jeito que é

O Casarão do Cordeiro
Por Marco Albertim, no Vermelho

 
Não é uma penitenciária. Mas o portal de acesso, que não é um portal, sugere que ali vive uma população abrigada em galpões. Nada de galpões, mas prédios de três andares, tão cinzentos quanto a rotina dos seus três mil moradores. As roupas estendidas nas sacadas, não escondem a privacidade de moças quase impúberes, de matronas severas, de velhas cujas rugas guardam uma estranha familiaridade com as rachaduras nas paredes; e com os beirais estropiados do teto de zinco em cada prédio.

A entrada é uma arcada alta toda em cimento, por certo concebida para convencer de q ue também nas margens do Rio Capibaribe, há uma Marienbach; dos trópicos e distante do leito gelatinoso do rio. A arcada perdeu a cor primitiva, ou acinzentou-se para seguir a deterioração da área de mato ralo a sua esquerda; mato ralo e montes de lixo que fazem o festim de ratos. Ali, o sol não queima a sujeira, deixa escapar livre o bodum para regalo dos urubus. À moda de estacionamento, por todo o alongamento de cada bloco, há vagas para os carros; as divisórias são de arames amarrados em estacas de madeira, com cobertas de zinco; a aparência é de galinheiros sem aves. Aqui e ali, botecos com prateleiras quase vazias, dão mostra de que na pobreza o pobre enxerga na bebida a fartura que um dia virá; incerta, por isso mesmo untada de gorduras, de massas.

O prefeito Geraldo Julio não percorreu as entranhas do Casarão do Cordeiro. O Santafé estacionou na rua Odete Monteiro. À frente da comitiva, entrou na Escola Municipal Darcy Ribeiro, com 590 alunos, ao lado da creche também do município, com 120 crianças. A escola, com instalações novas, em fase de acabamento, solta de suas paredes brancas o frescor da primeira pintura. Os operários, usando macacão azul, não se dão conta de que o contraste da roupa com as paredes é o rebuliço de uma pré-estreia. Nos fundos da escola, ao lado do Casarão do Cordeiro, a estrutura de ferro está montada para a construção da quadra poliesportiva; 675 metros quadrados e 424 de área de apoio para circulação, bloco de vestiários e arquibancada. Nos cálculos do diretor Geral de Engenharia e Arquitetura, João Wanderley de Siqueira, R$ 422.204, 82 serão gastos. Prazo para a execução, 120 dias.

No palco, Geraldo Julio não esconde do microfone, que a área, outrora baldia, servira de esconderijo para usuários de drogas, fomentando extravios no crescimento de crianças e adolescentes do Casarão do Cordeiro. "Há muito que fazer para a recuperação da rede de ensino." Mirian Elias, presidente da Associação dos Moradores do Casarão do Cordeiro, entrega-lhe um dossiê e reitera com a voz de quem se habituara a assembleias populares:

- Prefeito, a água que nós consumimos tem coliformes fecais porque os tanques de cada bloco são vizinhos às fossas; e as fossas estão com rachaduras nas paredes.

Com o suor empapando as costas da camisa, cercado por crianças da escola, ele segura o dossiê. Há gritos, insistência para autografar folhas de cadernos. Consegue assegurar, já sem o socorro do microfone, que o projeto do Casarão será executado na inteireza de como fora criado, a começar pela construção da escola. Mirian Elias retoma o dossiê; há fartura de fotos em preto e branco em suas doze páginas. Sua filha do mesmo nome, com dezesseis anos, conduz um assessor do vice-prefeito às dependências do bloco contíguo à quadra poliesportiva. Chovera, há poças de água da área sombreada da quadra às ruas do Casarão.

- É ali - diz ela sem hesitação, apontando com o dedo para uma das cisternas. - As duas fossas são quase juntas do tanque. Como uma das paredes das fossas está rachada, as fezes escorrem para o tanque cheio d'água.

Na sacada do terceiro andar, uma mulher gorda se debruça; estranha a inusitada presença do assessor, o contraste de seus trajes com morins e chitas pendurados nos varais. Os panos secam absorvendo a umidade escura das paredes. Do lado de fora, na rua calçada, a luz do sol é uma divisória acentuando a rotina sem luz de velhos aposentados, de moças que com a cadeira na porta do pavimento térreo, evitam o teto brumoso do apartamento.

São nove e trinta. A pequena multidão, inda que ruidosa, se dissolve para um lado e para outro, no que há de entretenimento no Casarão do Cordeiro. Os velhos assuntam meio que sem esperanças. Mirian Elias, filha, segue ao lado da mãe; tem o passo estugado, atestando a impaciência com os 120 dias de trabalho na construção.

O Santafé do prefeito Geraldo Julio cruza o limiar do portal. O mesmo velho que ali se postara numa cadeira à sombra, feito uma sentinela indiferente ao dia a dia dos reféns, balbucia para si mesmo:

- Será...?

Nenhum comentário: