28 abril 2013

Inquietações de um grande artista

Natal de 1989
Francisco Brennand
Publicado no Jornal do Commercio


Sempre o discurso do outro. Quem é Egídio Álvaro? Não importa. Vejamos o que ele tem a dizer, e que nos diz com propriedade: "Os artistas são os estrangeiros da história, os viajantes do futuro". Eu acrescentaria: criadores de sinais, precursores e depositários do indecifrável, provocadores de incontroláveis paixões ou perdas. No tribunal da história - não importa que história - entre culpado, testemunha e juiz, o artista será sempre a vítima. Ai das testemunhas e dos juízes por saberem sempre muito pouco! Permito-me uma ressalva: esses viajantes do futuro devem carregar um coração antigo.

Sim, com esse perpétuo calendário, acabamos convictos do fim dos tempos, e não apenas o passar de um novo ano. Rugem os latidos de uma nova década, mas é preciso convir que nada terminou ainda. Já não temos vivo o corajoso Samuel Beckett. Como me pereceu difícil dizer o que acreditava saber! Com ou sem Beckett eu concordaria que "só há caminhos errados. A questão é encontrar o caminho errado que lhe convém". Sempre foi assim que falaram os mais sábios. Uma espécie de razão extraviada? Tudo é possível. Aguardemos ao menos debaixo de um silêncio carrancudo, e nada de alvoroços. A bela Mary McCarthy costumava apontar como uma das características de Flaubert o fato das ideias do escritor transformarem-se em desolados clichês. "Para Flaubert todas as ideias se tornam triviais, assim que alguém as exprime. Isso aplica-se indiferentemente tanto às boas como às más ideias. Toda biblioteca circulante é uma imagem da própria civilização. Ideias e sentimentos ficam cada vez mais maculados e imundos, como livros de bibliotecas que passam de mão em mão". Não há melhor motivo para calarmos de vez. Lembrar a lição de Bartleby: "prefiro não dizer..."

Borges lembra, a propósito do desencanto de Bartleby, que é como se Melville houvesse escrito: "Basta que um único homem seja irracional, para que os outros o sejam e para que o seja o universo". Não pretendo ir mais longe, na realidade, aproximo-me de Bouvard e Pecuchet, novela exemplar de Flaubert, como também de Todos os que caem, um Beckett dos mais agônicos. Suponho que não há falácia nessa confissão. Antes, uma espécie de lucidez final: tout se tient. O mundo é monótono e os homens com as suas lamentações e esperanças não conseguem modificar suas velhas lendas. A canção derradeira é sempre a mais antiga.
Francisco Brennand é artista plástico 
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