18 janeiro 2015

A vida do jeito que é

Dialética de trevas
Marco Albertim, no Vermelho

O Flamboaiã de flores vermelhas pareceu repercutir o entrechoque de ideias. O chalé com as paredes brancas por dentro e por fora, fora pintado daquela cor para não dar conta da renhida disputa entre o casal. Sabiam-se afins, por isso mesmo tinham consciência de que abrir mão de um dado ou de outro do juízo de cada um, seria uma capitulação; e isso empobrecer-lhes-ia o currículo de casal amoroso, mas acima de tudo apaixonadamente polemista.

- Sônia Yevuchenka, sua dialética é de uso particular. Serve tão somente à conveniência de seus pontos de vista. E, o que é mais grave, não reflete a tradição revolucionária que Marx conferiu à categoria.

- Você, Bóris, está tão longe do pensamento de Marx, quanto do seu túmulo em Londres. Mas saiba que o seu maniqueísmo no trato de nossas relações, pode reverberar nas reuniões do Partido. Nós estamos perto da separação, e você está perto de abrir uma dissidência dentro do Partido.

- É provável. Já estão insinuando que as asas de seu pensamento têm o mesmo tamanho das asas de Rosa Luxemburgo. Estão confundindo o inchaço de suas ideias, com a largueza do pensamento de Rosa Luxemburgo. Você não pensa, Sônia Yevuchenka, você infla.

A noite cresceu tão densa quanto a discussão entre Bóris Preobrajenski e Sônia Yevuchenka. Em que pese a origem eslava de seus nomes, são brasileiros. Os pais também, mas foram gerados por famílias ucranianas. Bóris e Sônia, atraídos pela origem, creram-se fadados à vida em comum; juntaram-se como uma espécie de conúbio sanguíneo. O contato carnal deu-se simultâneo aos debates sobre como enriquecer a relação entre os dois, sem o risco de se deixar contaminar pelo vírus da concepção burguesa de casamento. Antes, uma mera tertúlia, inda que entremeando as lidas dos sexos. Com o tempo, a tertúlia tornou-se tão feérica quanto a disputa entre duas águias famintas pela presa.

Mas a noite adensou-se. Nenhum dos dois deu sinal de que a discussão esmoreceria. A acusação de que Sônia Yevuchenka enchia de ar comprimido suas ideias, seu juízo, convenceu-a de que o contra-argumento estava nos membros rijos de sua carnação. Ela eriçou-se feito uma tartaruga que emerge lenta, mas dura na marcha. Os bicos dos seios duros, tudo fazia crer que logo romperiam a maciez do sutiã. Tinha consciência disso, e fitou o parceiro com os olhos tão chispantes quanto a fúria dos mamilos.

- Ainda sentimos atração um pelo outro? - quis saber ela.

- Sim.

- Por quê? - insistiu.

- Porque não quero nunca que você abra mão da intransigência de sua ortodoxia.

- E se eu lhe fizer uma concessão? - provocou-o.

- Perderei até a libido por você.

Sônia Yevuchenka não quis tirar a roupa, porque sabia que, mesmo com o fustão amarelo enodoado cobrindo-a dos ombros à altura dos joelhos, Bóris Preobrajenski sabia apreciar-lhe os contornos do corpo. Ele sucumbiu à força penetrante dos olhos dela; desceu os olhos, adivinhando os traços da vibração nas curvas do corpo da parceira. Ela, tão dura quanto acessível, sequer moveu um dos dedos. Parecia convidá-lo ao desafio. Nos olhos luminosos de Sônia, leu:

- Tenho meu jeito de fazê-lo curvar-se as minhas ideias.

Ele abriu a janela, convencido de que o acanhamento das quatro paredes do quarto não daria conta da percepção dos sentidos de cada um. Sentiram o sopro conivente do vento na altura da noite fechada. O relógio da parede, com onze badaladas geladas, por certo tinha a força de um desvão há muito fechado, agora reaberto. Não havia lua; para quê? O lume de sua luz, até então só fora notado por escribas da burguesia, com poemas tão balofos quanto a inconsistência do sistema.

A escuridão dos astros distantes do quarto de Bóris Preobrajenski e de Sônia Yevuchenka, conferiu a marcialidade da relação entre os dois.

Os dois continuam vivos, casados. Não se sabe é se houve rendição na noite trevosa e cunhada de sentenças.

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