17 janeiro 2015

Episódio de uma guerra

Je ne suis pas Charlie
José Carlos Ruy, no Vermelho

O atentado que ocorreu em Paris em 7 de janeiro contra a revista satírica Charlie Hebdo foi um ato de guerra e não, como o debate que se seguiu quer fazer acreditar, uma ação contra a livre manifestação do pensamento ou a liberdade religiosa.
A barbárie daquela ação já foi proclamada à exaustão. Esse sentimento foi também traduzido na tiragem excepcional da edição sobrevivente da revista que alcançou (na quarta-feira, dia 14) a quantia de cinco milhões de exemplares (mais de 80 vezes acima da tiragem normal, de 60 mil exemplares) e chegou à cotação de um exemplar, na internet, ao preço absurdo de cerca de 34 mil reais.

Isto indica a extensão da comoção e da solidariedade despertadas pela ação terrorista. Outra indicação surgiu quando a primeira pessoa usou a expressão Je suis Charlie, como se dissesse: “os tiros também me atingiram”. A expressão se espalhou com a força de uma explosão exprimindo um sentimento coletivo de justa indignação.

Esta expressão foi, entretanto, rapidamente apropriada pelos monopólios da mídia patronal e pelo establishment governamental francês e de países europeus, sôfregos por navegar na onda de indignação popular e recriar o clima autoritário e antidemocrático que surgiu depois do ataque às Torres Gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001.

O insano ataque ocorrido em Paris destruiu parte da redação da revista satírica e matou 12 pessoas entre jornalistas, cartunistas, uma pessoa que visitava a redação e dois policiais (no total foram 17 mortos, se a conta incluir as vítimas do ataque a um supermercado judaico na sexta-feira, dia 9).

Como o ataque em Nova York, em 11 de setembro, os tiros deferidos em Paris só podem ser entendidos como um ato da guerra prolongada, agressiva e cruel dos países imperialistas (EUA à frente deles) contra árabes, palestinos e os povos que não se encaixam em seu figurino.

A generosidade daqueles que se proclamam de boa fé Je suis Charlie contrasta com a hipocrisia da grande mídia e do establishment que se apropriam do sentimento popular para fomentar posições bélicas agressivas, racistas, xenófobas e islamófobas.

Onde está a indignação provocada pelas ações terroristas que o estado sionista de Israel e as tropas imperialistas (sobretudo norte-americanas) promovem nos territórios palestinos ocupados e em quase todo o Oriente Médio? Na França, recentemente o governo proibiu manifestações contra a agressão de Israel à Palestina e pelo reconhecimento do Estado Palestino.

Os tiros na redação do Charlie Hebdo e no supermercado judaico em Paris merecem a condenação veemente e a repulsa generalizada. Da mesma forma como o insulto e o desrespeito a crenças, como as religiosas, precisam ser rejeitados e condenados. O debate ideológico é fundamental e a luta por uma visão de mundo laica é parte importante dele. Mas nada justifica a arrogância daqueles que pretendem impor, como qualquer fundamentalista, suas próprias opiniões ridicularizando crenças das quais não compartilham. Este pecado Charlie Hebdo foi pródigo em cometer!

Mas nada pode justificar a barbárie de se tratar o debate à bala! Uma sociedade democrática (e os franceses são orgulhosos da sua!) exige maneiras menos fisicamente agressivas de se contrapor a quem tenha uma opinião com a qual não se concorde. Elas vão desde manifestações pela imprensa (e, hoje, pela internet) até a realização de passeatas e outras maneiras lícitas e pacíficas de exposição de opiniões divergentes.

O uso de crenças, religiosas ou não, para justificar uma ação como a que ocorreu em Paris apenas disfarça seu motivo real. Este é a superfície do fenômeno. Por mais que pareçam movidas por crenças dessa espécie, não se faz uma guerra devido à religião do adversário. Os grandes senhores das guerras, aqueles que controlam os cordéis que movem ações destruidoras, sabem que estas alegações têm o objetivo de legitimar ações agressivas. São maneiras “limpas” para esconder lógicas de poder e interesses materiais reais e concretos e quase sempre inconfessáveis. Toda guerra é travada em torno de objetivos concretos.

Em uma época de declínio histórico do imperialismo, quando os EUA e as potências europeias se veem ameaçados por nações emergentes que podem levar ao redesenho radical da geopolítica mundial - uma época como essa é palco de conflitos acentuados, bárbaros, irracionais.

Os atentados em Paris foram atos de guerra no sangrento conflito que levou nos últimos anos a agressões à Líbia, à Síria e outras nações africanas e árabes. Sem falar na agressão sionista contra a Palestina, prestes a completar meio século.

Nesse conflito o imperialismo (EUA, França e Inglaterra mas também seus aliados no Oriente Médio, conflito no qual Israel ocupa um capítulo à parte) financia mercenários para desestabilizar governo. Como ocorreu na chamada “primavera árabe” de 2011, e continua acontecendo na Síria.

O que distingue a ação ocorrida em Paris de outras semelhantes praticadas em outros lugares no mundo é o fato de que na capital francesa a frente de batalha (como o 11 de setembro, em Nova York) estava em uma das sedes do imperialismo e não em alguma localidade longínqua de uma nação pobre no Oriente Médio ou na África.

A reação desencadeada pelo assassinato daquelas 17 pessoas (principalmente dos cartunistas do Charlie Hebdo) permitiu novamente a revelação da hipocrisia da mídia e dos governos do imperialismo. A França, por exemplo, que se autoproclama “pátria da liberdade” (e ela é, para seu povo mas não para seu governo) não hesitou em desencadear um clima de arbítrio próprio de ditaduras. Até a última quarta feira (dia 14) foram abertos 54 processos contra pessoas acusadas de apologia ao terrorismo devido a declarações sobre os atentados. Segundo a imprensa, cinco pessoas já foram condenadas a penas que chegavam a vários anos de prisão!

Na terça-feira (dia 13), dois dias depois da gigantesca manifestação parisiense pela “liberdade de expressão”, o popular e polêmico humorista da TV francesa Dieudonné foi preso sob acusação semelhante, por ordem direta do primeiro-ministro Bernard Cazeneuve. O crime de Dieudonné foi postar uma mensagem no Facebook dizendo: "...no que me diz respeito, eu me sinto como Charlie Coulibaly", num trocadilho com o nome de Amedy Coulibaly, que atacou o supermercado judaico na sexta-feira. O humorista pode ser condenado a sete anos de prisão pela ousadia de manifestar sua opinião!

Apesar da himalaica tiragem de cinco milhões de exemplares não se pode dizer que o Charlie Hebdo fosse uma revista particularmente querida dos franceses. Muitos a consideravam de mau gosto pela frequente e pouco elegante campanha contra as religiões, em especial contra o islamismo. E tudo indica que o judaísmo era poupado... Em 2009 sua direção demitiu o cartunista Siné (Maurice Sinet, 86 anos de idade) por ironizar o filho do então presidente Sarkozy, que teria se convertido ao judaísmo. Siné foi acusado de antissemitismo mas, tendo rejeitado a proposta de pedir desculpas, acabou demitido.

Nenhum homem é uma ilha, afirma o verso célebre do poeta inglês John Donne (1572-1631). Nunca pergunte por quem os sinos dobram: eles dobram por ti, diz aquele poema em seu humanismo vibrante. Esta evocação ocorre quando tantos proclamam je suis Charlie. Frase que, comparada ao verso publicado por John Donne em 1624, se revela limitada e parcial.
A igualdade, liberdade e fraternidade proclamada na França há mais de duzentos anos exige o reconhecimento da dignidade intrínseca de cada um dos seres humanos não importa a cor de sua pele, o formato de seus olhos narizes cabelos ou crâneos, suas crenças, seu sexo e orientação sexual.

Não importa também que diferencia as pessoas entre si - a igualdade fundamental entre todos precisa se impor; ela é mais forte que qualquer diferença. O reconhecimento da dignidade e do direito à vida e a condições adequadas de saúde, educação, moradia etc etc. faz parte das conquistas civilizatórias da humanidade. Hoje o grande adversário dessas conquistas é o imperialismo, que é a principal fonte das guerras e da instabilidade no mundo. Do terrorismo de todas as espécies e origens, principalmente do terrorismo de Estado que exércitos fortemente armados praticam por atacado em comparação com o varejo do terrorismo individual.

O que ocorreu em Paris não foi episódio de um debate mas de uma guerra. Assim não basta proclamar je suis Charlie quando é preciso dizer, contra os poderosos das armas e do dinheiro: nenhum homem é uma ilha!

O trecho do poema de John Donne

Meditação XVII


“Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um amigo teu, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”

(veja a íntegra: http://www.vermelho.org.br/noticia/165821-285)
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