16 janeiro 2015

Uma crônica para descontrair

Edvar Munch
Um discreto viajante
Luciano Siqueira, no Jornal da Besta Fubana

Pela enésima vez sigo do Recife a São Paulo acomodado num assento de corredor de um boeing desconfortável, porém eficiente e seguro. Leio, escrevo, cochilo uns poucos minutos e dou-me a pachorra de observar o comportamento da maioria de uns tantos passageiros mais próximos. E confirmo, uma vez mais, que sou mesmo um viajante atípico - precisamente o que não gostaria de ser, tímido irrecuperável que sou.

Que tem a ver a timidez com o comportamento durante o voo? Tudo. Se você que me lê agora não padece de timidez, saiba que o tímido tem por aspiração irrecusável entrar e sair nos lugares sem ser percebido, cumprir rituais estabelecidos não por prazer, mas como forma de fazer parte da paisagem naturalmente, sem chamar a atenção.

Eu mesmo jamais comprei uma camisa multicolorida, usei sapatos extravagantes nem falei alto em ambientes públicos... Para que ser notado, se me conforta o anonimato?

Evidente que em ambientes frequentados por pernambucanos, não consigo passar indene - nem na terrinha, nem num avião que parte do Recife e nem mesmo em Buenos Aires, que constatei mais de uma vez, concentra muita gente daqui nos finais de semana. Vá à feira de arte e artesanato de San Telmo e você encontrará tanta gente amiga ou nem tanto, que logo lhe aborda como se estivesse ali no Recife Antigo. 

Mas, fora disso, se for possível me camuflar, ótimo. Durante um voo, não disputo o acento da janela, não converso com o vizinho, apenas folheio a revista de bordo, não faço perguntas aos comissários, não frequento a toalete, dispenso fones de ouvido - e permaneço, como de hábito, concentrado na leitura e nas minhas anotações ou simplesmente durmo. Por isso me sinto um ET em meio à movimentação em torno. Porém termino atraindo a atenção das pessoas, que me olham com desconfiança ou curiosidade.

Uma vez em terra firme, se a viagem é de lazer, por mais rica em atrações que seja a cidade, compartilho com Luci e as meninas a boa e prazerosa discrição. Aquela de não tirar o olho do Guia Quatro Rodas e do mapa turístico, marcador de texto à mão, calculando o tempo disponível e controlando a lista de lugares a visitar, nem pensar! Mil vezes mais agradável quedar horas numa mesa de calçada, bebericando e vendo o mundo passar diante dos nossos olhos. 

Em Paris, por exemplo, nunca topamos enfrentar a quilométrica fila do Louvre e tem gente que nos critica duramente por tamanho sacrilégio! 

De sacrilégio em sacrilégio, gastamos horas à mesa de um café de esquina na Praça Tiradentes, em Ouro Preto, Minas Gerais; e, devidamente acomodados em espreguiçadeiras, à margem do Rio D'Ouro, na Cidade do Porto, Portugal, em evidente prejuízo de visitas a igrejas e outros lugares "obrigatórios". 

Por essas e outras, sinto um quê de incoerência quando digo a visitantes no Recife que não podem deixar de visitar a Sinagoga na Rua do Bom Jesus, a oficina de Brennand, as praças projetadas por Burle Marx e que tais. Pois quem visita uma cidade procura o que lhe apetece e tem a ver com o seu próprio imaginário, ao invés de seguir o lugar-comum. Afinal, entre o indivíduo e as cidades do mundo bom mesmo é quando se estabelece uma relação de amor - e, como em toda relação de amor verdadeira, como bem ensina o poeta Drummond, a gente não se submete a normas nem a regulamentos vários. Ama livremente.

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