A vespa e a
tarântula
Celso P. de
Melo*, no portal Vermelho
Em algumas
espécies de tarântulas da família Theraphosidae, as longas pernas
cobertas por pelos podem alcançar a envergadura de um prato de jantar. Essas
aranhas gigantes parecem figuras saídas de um filme B de terror: após matar
pequenos pássaros e roedores com suas presas venenosas de quase 4 cm de
comprimento, sugam suas vítimas, rapidamente liquefeitas pela ação de seus
sucos digestivos. E, no entanto, as tarântulas são por sua vez predadas por
vespas da amília Ichneumonidae, oito vezes menores em tamanho. Na
época da postura, as vespas fêmeas dessa família ativamente procuram
tarântulas, para lhes aplicar uma picada venenosa no ventre, que as paralisa
sem matar. Arrastam então a aranha imobilizada até sua toca, quando um único
ovo é depositado no interior de seu corpo. Pelos próximos dias ou semanas, a
aranha permanecerá viva, porém sem reação, enquanto a larva lhe consome
inicialmente os órgãos não vitais, só a matando pouco antes de eclodir sob a
forma de pupa.
Há séculos a
relação entre parasitas e hospedeiros fascina e perturba teólogos e cientistas,
incluindo o próprio Darwin. Como a Natureza poderia ser tão fria e dura, a
ponto de permitir que a larva de uma espécie consuma gradualmente outro ser,
imobilizado, porém vivo, que lhe serve de nutriente vital? Por quais mecanismos
teriam as larvas “aprendido” a preservar os órgãos essenciais de suas vítimas
até quase o momento final? Por que a tarântula não desenvolveu mecanismos de
defesa e se deixa predar?
Países
também se deixam internamente destruir pela ação de agentes exógenos. No atual
desmonte do projeto de nação brasileira, passivamente assistimos nos serem
levados os instrumentos e mecanismos de sobrevivência como país soberano.
Pré-sal e independência energética, a indústria naval e a afirmação das
empresas de engenharia que nos ajudaram a atingir o posto de oitava economia do
mundo moderno, os projetos de autonomia tecnológica na defesa e na capacitação
do ciclo nuclear, tudo nos está sendo sugado de dentro para fora.
Diferentemente da tarântula, porém, nossos parasitas não são apenas de natureza
externa. Brasileiros que introjetaram uma visão de nação caudatária participam
ativamente desse processo. O nosso organismo social sucumbe com rapidez, na
predação voraz de direitos sociais e trabalhistas, pela prioridade dos
predadores em transferir nossas riquezas para o que realmente lhes interessa, a
garantia do pagamento dos juros que sustentam o rentismo interno e externo. Tal
como no ataque da vespa Ichneumonidae, a sobrevivência
da vítima nunca esteve em questão: condenada está desde o primeiro momento, mas
sua morte não ocorrerá antes da exaustão de suas energias vitais.
A vespa
esmeralda (Ampulex compressa) serve como exemplo perturbador do domínio
e controle da vontade alheia. Muito menor que seu alvo, uma espécie de barata
do gênero Periplaneta, não pode arrastar sua presa até o local de
incubação. Por conta disso, desenvolveu um processo ainda mais sofisticado de
ataque: com duas picadas seguidas em locais específicos do sistema neuronal da
vítima, lhe inibe a reação de fuga, mas não a capacidade de caminhar. E assim,
tal qual um autômato zumbi, a barata se deixa docilmente conduzir pelas antenas
até a toca de seu algoz, como um fiel cão doméstico puxado pela guia. Estamos
sendo vorazmente predados pela junta financeira que nos comanda, com seus asseclas
na mídia, judiciário e corporações a nos ensinar de modo alegre e faceiro que a
pilhagem de nossos recursos vitais servirá ao nosso próprio bem. A corrupção
(de alguns) seria o nosso grande mal, não a iníqua divisão estrutural de nossa
sociedade, em que há quinhentos anos a parte majoritária do povo brasileiro é
pensada apenas como composta por serviçais à disposição de uma supostamente
mais esclarecida minoria (branca). A nossa vespa esmeralda encontra outros
apoiadores domésticos em um congresso sabidamente comprometido com os
interesses dos atores externos e internos responsáveis pela pilhagem que agora
se faz às claras.
Não há mais
resquícios de pudor: como a tarântula, a nação assiste anestesiada à sua
destruição por dentro, com a paulatina dissolução de seu tecido social e
desintegração de sua estrutura orgânica. Tudo de acordo com a mais perfeita
ordem e legalidade, com todos os rituais formais de uma democracia que
passivamente se deixa suicidar. Até quando, cabe a alguns poucos ainda perguntar.
José Mujica
recentemente nos ensinou que só está de fato derrotado quem deixa de lutar pelo
que acredita. Contrariamente a uma aranha anestesiada, não há imperativo
biológico que nos impeça a resistência e a luta. Eles pensam que duram para
sempre. Queimaram seus navios, partiram para o tudo ou nada, na tentativa de em
seis meses fazer a sociedade regredir 60 anos. Mas a história não para. Aos
poucos, o que nos resta de consciência e dignidade fará juntar os cacos do país
para enfim expulsar e castigar os usurpadores, regenerar os tecidos sociais
danificados e permitir nosso soerguimento como nação soberana, esperamos que
dessa vez por fim definitivamente mais justa.
*Físico, professor e pesquisador da
Universidade Federal de Pernambuco.
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