12 dezembro 2016

Resistir para mudar

A vespa e a tarântula
Celso P. de Melo*, no portal Vermelho 
Em algumas espécies de tarântulas da família Theraphosidae, as longas pernas cobertas por pelos podem alcançar a envergadura de um prato de jantar. Essas aranhas gigantes parecem figuras saídas de um filme B de terror: após matar pequenos pássaros e roedores com suas presas venenosas de quase 4 cm de comprimento, sugam suas vítimas, rapidamente liquefeitas pela ação de seus sucos digestivos. E, no entanto, as tarântulas são por sua vez predadas por vespas da amília Ichneumonidae, oito vezes menores em tamanho. Na época da postura, as vespas fêmeas dessa família ativamente procuram tarântulas, para lhes aplicar uma picada venenosa no ventre, que as paralisa sem matar. Arrastam então a aranha imobilizada até sua toca, quando um único ovo é depositado no interior de seu corpo. Pelos próximos dias ou semanas, a aranha permanecerá viva, porém sem reação, enquanto a larva lhe consome inicialmente os órgãos não vitais, só a matando pouco antes de eclodir sob a forma de pupa. 
Há séculos a relação entre parasitas e hospedeiros fascina e perturba teólogos e cientistas, incluindo o próprio Darwin. Como a Natureza poderia ser tão fria e dura, a ponto de permitir que a larva de uma espécie consuma gradualmente outro ser, imobilizado, porém vivo, que lhe serve de nutriente vital? Por quais mecanismos teriam as larvas “aprendido” a preservar os órgãos essenciais de suas vítimas até quase o momento final? Por que a tarântula não desenvolveu mecanismos de defesa e se deixa predar? 
Países também se deixam internamente destruir pela ação de agentes exógenos. No atual desmonte do projeto de nação brasileira, passivamente assistimos nos serem levados os instrumentos e mecanismos de sobrevivência como país soberano. Pré-sal e independência energética, a indústria naval e a afirmação das empresas de engenharia que nos ajudaram a atingir o posto de oitava economia do mundo moderno, os projetos de autonomia tecnológica na defesa e na capacitação do ciclo nuclear, tudo nos está sendo sugado de dentro para fora. Diferentemente da tarântula, porém, nossos parasitas não são apenas de natureza externa. Brasileiros que introjetaram uma visão de nação caudatária participam ativamente desse processo. O nosso organismo social sucumbe com rapidez, na predação voraz de direitos sociais e trabalhistas, pela prioridade dos predadores em transferir nossas riquezas para o que realmente lhes interessa, a garantia do pagamento dos juros que sustentam o rentismo interno e externo. Tal como no ataque da vespa Ichneumonidae, a sobrevivência da vítima nunca esteve em questão: condenada está desde o primeiro momento, mas sua morte não ocorrerá antes da exaustão de suas energias vitais. 
A vespa esmeralda (Ampulex compressa) serve como exemplo perturbador do domínio e controle da vontade alheia. Muito menor que seu alvo, uma espécie de barata do gênero Periplaneta, não pode arrastar sua presa até o local de incubação. Por conta disso, desenvolveu um processo ainda mais sofisticado de ataque: com duas picadas seguidas em locais específicos do sistema neuronal da vítima, lhe inibe a reação de fuga, mas não a capacidade de caminhar. E assim, tal qual um autômato zumbi, a barata se deixa docilmente conduzir pelas antenas até a toca de seu algoz, como um fiel cão doméstico puxado pela guia. Estamos sendo vorazmente predados pela junta financeira que nos comanda, com seus asseclas na mídia, judiciário e corporações a nos ensinar de modo alegre e faceiro que a pilhagem de nossos recursos vitais servirá ao nosso próprio bem. A corrupção (de alguns) seria o nosso grande mal, não a iníqua divisão estrutural de nossa sociedade, em que há quinhentos anos a parte majoritária do povo brasileiro é pensada apenas como composta por serviçais à disposição de uma supostamente mais esclarecida minoria (branca). A nossa vespa esmeralda encontra outros apoiadores domésticos em um congresso sabidamente comprometido com os interesses dos atores externos e internos responsáveis pela pilhagem que agora se faz às claras.
Não há mais resquícios de pudor: como a tarântula, a nação assiste anestesiada à sua destruição por dentro, com a paulatina dissolução de seu tecido social e desintegração de sua estrutura orgânica. Tudo de acordo com a mais perfeita ordem e legalidade, com todos os rituais formais de uma democracia que passivamente se deixa suicidar. Até quando, cabe a alguns poucos ainda perguntar. 
José Mujica recentemente nos ensinou que só está de fato derrotado quem deixa de lutar pelo que acredita. Contrariamente a uma aranha anestesiada, não há imperativo biológico que nos impeça a resistência e a luta. Eles pensam que duram para sempre. Queimaram seus navios, partiram para o tudo ou nada, na tentativa de em seis meses fazer a sociedade regredir 60 anos. Mas a história não para. Aos poucos, o que nos resta de consciência e dignidade fará juntar os cacos do país para enfim expulsar e castigar os usurpadores, regenerar os tecidos sociais danificados e permitir nosso soerguimento como nação soberana, esperamos que dessa vez por fim definitivamente mais justa.
*Físico, professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco.

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