20 outubro 2018

Incomunicabilidade na rede


Bolha

WhatsApp, fake news e engajamento dos cultos evangélicos ganharam de lavada as eleições

Fernanda Torres, na Folha de S. Paulo

No programa de David Letterman na Netflix, Barack Obama cita um teste realizado pela Casa Branca durante a Primavera Árabe, que pretendia avaliar o poder de direcionamento do algoritmo nas redes sociais. Internautas de direita, de esquerda e de centro digitaram a palavra Egito, a fim de descobrir o que cada segmento obteria como resposta.

Os conservadores foram direcionados para links relacionados ao terrorismo, ao jihad e à ameaça muçulmana. A busca dos progressistas resultou em notícias que festejavam o levante egípcio como um auspicioso despertar do mundo árabe. Já os de centro foram brindados com inofensivos sites turísticos, que anunciavam os "Best Places to Visit in Egypt". Vivemos isolados em bolhas de preferência, ignorando, por completo, a do vizinho.

Quem esteve presente na manifestação do #EleNão vivenciou uma multidão pacífica de senhoras, senhores, crianças e militantes feministas. Os que não foram às ruas viram versões distorcidas de meninas de peito de fora, enfiando crucifixos no meio das pernas, fumando maconha e clamando pela volta de Satanás. A assombrosa alavancada de um candidato a governo do Rio de Janeiro, o ex-juiz Wilson Witzel —que, em dois dias, atingiu 39% de preferência nas urnas—, prova que os métodos de convencimento da velha política foram parar na lata de lixo da história.

O WhatsApp, as fake news e o engajamento dos cultos evangélicos ganharam de lavada as eleições de 2018. Num vídeo gravado, Witzel se dirige à Polícia Militar, prometendo extinguir a Secretaria de Segurança Pública para eliminar a má influência dos políticos nos órgãos de policiamento investigativo e ostensivo.

A medida, acredito, receberá o apoio de uma massa de eleitores que associam a política ao crime. Um cidadão que, fora de sua bolha, levantar a voz em favor da secretaria de Segurança corre o risco de ser crucificado pela conivência com a corrupção. A classe artística, cuja opinião vem sendo inoculada pelo simples teclar de dez letras: Lei Rouanet, tem enfrentado rejeição semelhante à da política.

No último debate presidenciável, na TV Globo, os candidatos presentes repetiram a retórica de acusações ao PT e ao PSDB, além das réplicas do Lula Livre. Indefesos diante da nova máquina eleitoral, eles pareciam falar do túnel do tempo do milênio passado. Os grupos fechados do meu celular aplaudiram o discurso de Boulos contra a ditadura militar, mas a indignação morria ali, entre muros. A ditadura não está na pauta dos que cresceram na redemocratização com o celular em punho. A Lava Jato e a crise na segurança, sim.

O golpe de 1964 e o AI-5 são tão distantes da experiência histórica dos que têm menos de 40 anos quanto Juscelino, o tenentismo e a política do café com leite. No colégio abastado do filho de um amigo meu, todos os garotos de 18 que votaram no partido Novo migrarão para o PSL, convencidos de que a aliança do livre mercado com a "sociedade de bem" armada trará benefícios para o país.
Nenhum deles se preocupa com uma possível ascensão de forças paramilitares —muito menos com a perseguição a grupos identitários. Tudo é visto como petismo travestido de mimimi humanitário para esconder os anos de roubalheira. O que impressiona é perceber que, assim como na eleição de Donald Trump, os chamados progressistas, que deveriam estar atentos ao futuro das novas mídias, permaneceram fiéis aos mesmos instrumentos de divulgação de ideias do tempo da vovó menina.

Enquanto isso, a ultra direita vem agindo cirurgicamente, há bastante tempo, em dois campos aparentemente antagônicos e difíceis de serem vencidos agora: a inteligência artificial e a fé em Cristo, em voga desde o fim da Antiguidade.

Vai encarar?

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”
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