Versos inconclusos
Luciano Siqueira
No bar ao lado do Restaurante Viena, no Aeroporto de Guarulhos, as mesas são muito próximas. Apenas dois fregueses, ele e eu. Ele, sem bagagem, nem bilhete de viagem visível, zero preocupação com a hora, talvez na quarta ou quinta dose de uísque. Eu, saboreando uma Boêmia long kneck, atento ao relógio, aguardando o momento de embarcar num voo da Gol das vinte três horas com destino ao Recife.
Ao perceber meu interesse, disse chamar-se Floriano e
mostrou-me um rabisco no avesso de uma embalagem de cigarro: “Parti para a mais
cruenta das guerras/e apenas um olhar distante de lancinante indiferença/nem
uma palavra, um aceno que me...”.
– Um poema?, perguntei. “
– Ah, amigo tenho os versos aqui no peito e não consigo
botar no papel!”, respondeu, com a fala enrolada e os olhos faiscantes.
Tentou me explicar, com dificuldade. A voz grave, engolindo
as sílabas, a muito custo mencionou alguém de quem esperava e não obteve a
palavra amiga, solidária, afetuosa.
Com todo respeito a Antonio Maria, que dizia acreditar na
sinceridade dos bêbados e dos poetas, aviso que os poetas têm de mim admiração
e carinho; os bêbados, nem tanto.
Explico. Sem poesia a vida seria cinza e monótona. Os poetas
são seres especiais – os grandes poetas e mesmo os médios e os apenas
esforçados. Estes últimos tentam, e já é alguma coisa.
Imagine se nossa existência em meio a verdades, mentiras,
pelejas mil, amores e dores, desespero e esperança não pudesse ser iluminada
jamais por um Drummond, um Vinícius, um Neruda, uma Cecília Meireles?
Já os bêbados seriam dispensáveis – sobretudo os chatos,
barulhentos, conversadores, donos da verdade, tristes, eufóricos e
inconvenientes.
Mas confesso que há um tipo de bêbado que exerce sobre mim
uma atração irresistível, desperta um profundo sentimento de solidariedade: o
bêbado solitário.
Nada é mais comovente do que a imagem do cara ilhado, ele e
o copo, ele e a desilusão, ele e o fracasso.
Nunca vi alguém beber sozinho com alegria. Jamais recolhi de
um desses o sorriso que não fosse de discreta vergonha, aquele sorriso sem
graça de quem sofre e procura dissimular.
Quando posso, me aproximo: um leve cumprimento, o olhar
cúmplice à espera de um grunhido qualquer, um sinal de vida, um laivo de
resistência.
Foi assim que travei o breve diálogo com Floriano, o bêbado
autor do poema apenas iniciado.
- “Ficou um buraco deste tamanho aqui no peito, que dói, dói
uma dor que não quer passar, entende?”
Eu disse “entendo, sim”, e me desculpei por não poder continuar
a conversa, tinha chegado a minha hora.
Mas a vontade era de retardar a minha viagem, quem sabe
depois de mais uma dose ele viesse a completar os versos amargos e aliviar o
sentimento de desamor e perda.
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